28.2.06

«A Expressão dos Afectos»



de António Mega Ferreira, Assírio & Alvim, 2001.



Às páginas 115, abre-se aos nossos olhos o título:
«O Homem que inventou Borge
[Sempre que algo sobre Borges me cai sob o olhar, pronuncio, em surdina e por vício crónico de sotaques Hrrórrhéh Luiss Bórrheh. Se é exactamente assim, ignoro. Sei, isso sei, que os latinos do castelhano de fora da Península Ibérica ciciam mais os "ésses" e há sons aspirados, como o h dos andaluzes...
Borges é, de longe o mais difícil autor que li, tirando Pascal Quignard, um outro Da Vinci da Literatura, da História, da Filosofia, da Etimologia... Descobri-o no fim do ano lectivo de 98/99*, o mesmo ano de quinze livros lidos e doze deixados algures pelo meio. Quignard é de tal forma um dos meus mestres que lhe prestarei, um dia, a homenagem que é ler todas as suas obras. Acalento, ainda, outros projectos a propósito. Singelezas.]
O conto de Mega Ferreira explora a questão da alteridade de um autor. Haver, por nós, um outro eu - o próprio Deus por nós? - que cria a obra - O Livro, o único alguma vez escrito, palimpsesto das ideias de todos os que anseiam encontrar o aleph (explica-se n' O Aleph de Borges que este seria o lugar "onde estão, sem se confundirem, todos os lugares do mundo, vistos de todos os ângulos").
Pierre Menard existiu, de facto?
Ao (re)escrever o Quixote, Menard terá reescrito Miguel de Cervantes Saavedra?
Sempre que há criação, ela já terá existido avant la lettre?
Será cada criador apenas um precursor de um outro, sendo que se o primeiro referido se reveste de prestígio - porque foi o primeiro na criação - ele tem prestígio apenas porque existe um outro que, não tentando plagiá-lo, o recria?
Pode existir um "ghost-writer"?
O texto adensa-se: revisita Proust, Zenão de Eleia, Leibniz, Montaigne, aponta laivos de Nietzsche e Zoroastro (Zaratustra), Pascal, Paul Valéry, Mallarmé...
« (...) E as admiráveis páginas consagradas por Pascal ao jogo e ao risco prendem-se enigmaticamente com a citação do D. Quixote que acima fizemos. Como distinguir a certeza da incerteza, o ganho do risco? Atente-se nesta frase: « si vous gagnez, vous gagnez tout, et si vous perdez, vous ne perdez rien.» Pascal refere-se a um aposta específica: a da existência de Deus. Mas não é o projecto de D. Quixote isso mesmo, uma aposta na presciência divina, a certeza de que um Livro existe, e só um, e que esse Livro é revelado por Deus, e só por ele? E não é a Deus que se entrega, in fine, o cavaleiro andante ao qual Menard se assimila? Como não ler os fragmentos citados de Pascal, tal como Pierre Menard indiscutivelmente os escreveu? (...)»
Percebe-se, então, ao último parágrafo da página 122 e no prolongamento da página 123 que «a atitude do escritor francês [Menard] parte de dois pressupostos: (...)».
[Aqui, a água que cresce na boca dos curiosos acelera a rapidez dos olhos correndo a folha, o dedo indicador direito pronto para voltar nova página, como se ali estivesse A Revelação... A fazer nova citação que, como todas é castrante, mais merecedor me parece que cada um se dedique, se gosta destas problemáticas, a procurar o livro.]
Numa nota final à obra, A. Mega Ferreira explica que nesta versão «se vai mais longe na "ficção exploratória" ensaiada num extenso artigo publicado em 1986 no DN, por ocasião da morte de Jorge Luis Borges.»
[Para aguçar apetites de mentes inquietas, regressemos, por segundos, ao conto da obra que dá título a este post e que me fascinou. Mega Ferreira faz "a" surpreendente revelação na página 134:]
«Numa tarde de Primavera de 1980, assisti, num dos auditórios da Universidade de Chicago, a uma das muitas conversas com que Borges entretinha a curiosidade de estudantes e estudiosos da sua obra, durante essa longa permanência nos Estados Unidos. Pierre Menard veio à conversa.
(...)
Borges ficou absorto, com o olhar opaco perdido no espaço. Depois (...) »
[Ler, ler imperiosamente: a resposta (ao enigma?) está, como sempre esteve, no título! A culpa é sempre, sempre do mordomo?]
;0)
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* A vida de um professor conta-se em anos lectivos. Este, foi o único da quase-depressão, enterrada num inferno que me recuso a ver como parte do meu país. Ler foi - por oposição à narcose da fuga à realidade que podem ser os anti-depressivos - o meu mergulho nas águas geladas da sanidade mental. Tornei-me tão forte que, recordo, cheguei a conseguir ler umas linhas do intragável A. Lobo Antunes sem posterior paragem digestiva... (E não, D. não lamento nada...)

Serenata Nº 13 em Sol Maior

... para orquestra de cordas, Eine kleine Nachtmusik, K 525 (orquestra de câmara checa) .


Mozart ilumina-me. Meu Deus, ESTE homem existiu? TU existes, então!



Hoje, o dia acordou-me cedo.
Estranhamente, o frio não me condicionou. Levantei-me com os últimos pássaros, pelas 8. Persianas abertas, espreitadela ao sol: eu sabia que Março seria diferente! Frescura da higiene, risos, perfumes, roupas quentinhas, grande lenço negro com pregadeira de pedrarias foscas, novo gancho nos cabelos: metal dourado, fosco, rendilhado, semi-círculo que me apanha a trança pelo centro, deixando caracóis em liberdade, mortal estilete cortando a meia-lua de metal. Sinto que vou à Ópera! Rio a par com as manhãs perfeitas!
Oh, dias da minha vida: como precisei desta gloriosa manhã! O amor insiste em acenar-me, aos quase trinta e sete anos: aceito-o?... Investirei sempre na mesma escolha de Sartre e Beauvoir: o amor em casas separadas. Manias de não sujeição aos impérios de obrigações a que obrigam os impérios dos sentidos. Que fazer se nasci para manias aristocráticas? Se Deus não se importar e não me cumular de castigos judaico-cristãos... eu também não! Andava eu a pensar que o mundo precisa da culpa, da consciência, do medo da vida além-túmulo. E contudo. E contudo, reservo-me o direito às prevaricações: mais sal, mais sal à minha vida! Que venha o sal, mesmo se nas feridas! Direi, um dia, como o poeta: vivi! Paralelos & meridianos: não prejudicar outros com as minhas escolhas! (Rio do meu riso).
Prossigo o meu passeio pela clara manhã do dia lavado. Cumprimento pardais, rego plantas, compro mais Mozart, oiço os sinos das igrejas, palumbus de pombais vizinhos povoam,em bandos, os céus da cidade, ninguém deixou "partidas de Carnaval" no meu carro. Óptimo. Pôr roupa a secar, passar outra, arrumar em gavetas. Internet: só meia horinha... Mais um dia fechada a fazer os trabalhos para a escola. E que bem saberia Mozart sob o sol, ao volante do meu corcel negro, devorando quilómetros... De novo, um prazer adiado...
Amanhã, escola...
Noblesse oblige.
(suspiro)

Quienes es usted, A.M.?

Sei que li este blog há meses.
A imaginação diz-me que é um blog de mais um dos muitos alunos-Erasmus por toda essa Europa! Ainda sem ter lido muito do que foi publicado, gosto de pensar que é mais um blog do tipo de tantos que li por inteiro, tentando rever as experiências dos meus 22 anos, quando fui uma feliz aluna-Erasmus!
Ser aluno num outro país ensina tudo. Aprende-se de tudo, fazem-se amigos do mundo inteiro. Em França, conheci raparigas da Islândia com sorrisos inigualáveis pela simpatia; rapazes da Indonésia muito compenetrados nas aulas e uns ares matreiros dando-lhes uma pinta ainda mais infantil do que já tinham, com as suas pequenas estaturas; jovens dos Estados Unidos que se denunciavam pelo sotaque kél'hfórlnián e diziam "Le Frlomage" para as fotos, além de se apresentarem - pelas oito horas da manhã - com a respectiva latinha de Coke e faziam de tudo para chamar as atenções do mundo, tão infantis como adoráveis como incultos; irlandeses que chegavam ao pub já alcoolizados e celebravam com um comovedor afinco o Saint Patrick's Day, excelentes jogadores do seu "soccer" e de cuja claque fiz parte, com uma montanha de irlandesas que me faziam corar porque dançavam cancan para os jogadores e se lhes sentavam nos colos para a foto de grupo (caía-se com as gargalhadas, forma única de aquecer por entre o vento de neve), havendo um lindíssimo e enorme irlandês de cabelos vermelhos que, não inscrito na escola e sem plano de estudos, vegetava, dormindo com todas as raparigas do seu país à vez (elas diziam praticar caridade com o Ian...); fiz amizade com um grupo de raparigas e um simpático pouco-mais-que-miúdo belga, o Wimm e com os quais me diverti em coreografias num jogo dos Harlem Globetrotters; conheci um miúdo escocês - a nossa mascote, Malcolm, 17 anos - que sabia tudo sobre... golfe e dizia que as névoas do pays français eram os dias quentes na Escócia (!), pelo que vestia quase sempre t-shirt; um grupo de espanholas do País Basco lideradas por Lourdes e com uma garra inimaginável para o trabalho como para o divertimento; alemães que eram máquinas de trabalho e organização mas tinham também bolsas de estudo que lhes permitiam praticar todos os desportos radicais que imaginar se possa; conheci israelitas, polacos, suecos, um lindíssimo rapaz de Manchester que enlouquecia as miúdas com ousados convites e que, entre outras coisas, ia de calções para a neve (meu Deus, que peeeernas!) tentando constipar para escapar aos exames e dava, na biblioteca nomes como Monsieur Anchid Tallon, Monsieur Obélix, entre outras figuras de BD, o que fazia parar todas as leituras (até as dos velhinhos franceses que, ora meneavam a cabeça em censura, ora riam com prazer) para ver quem teria tal nome... A quantidade de pessoas que conheci... A maioria, estrangeiros, como eu.
Havia Guerra no Golfo e Mar'mout, um rapaz koweitiano passava agruras, chorando pela família... Todos temiam os árabes da cidade. Nunca os temi, apenas me causava curiosidade a sua cultura, por isso, ia perguntando tudo. Aprendi tanto sobre as diferenças culturais!
Mas tive tantas saudades de casa... Estudei tanto, meu Deus!
Aprende-se! Selecciona-se o útil e aprende-se com as menos acertadas escolhas.
Em França, dizia-se: «A juventude faz-se viajando». Que país aquele!
(...)
Quem é André Mendes? Provavelmente, se especularmos, um jovem do qual eu poderia ser mãe e com a mesma curiosidade pelas imagens, pelos lugares, pela cultura.
Quem é, afinal?... E isso importa? Este é um dos blogs onde aprendo e onde a retina se detém em belíssimas imagens. Blog sem comments, o que só lhe confere qualidade - como o meu voltará a ser logo que termine a experiência para uma teoria muito minha sobre o assunto -, sóbrio, sereno.
Não faço aqui links permanentes e a minha lista - para evitar acenos da liberdade condicionada que nem à soleira da porta quero - é independente. Quem sabe que lhe leio o blog, sabe que está na lista. Eis tudo.
Salvé, A.M.!
Na minha imaginação, será mais um colega nos bancos da escola, um companheiro de viagem com o belíssimo privilégio comum de ser aluno-Erasmus!
Vê? Fez-me recordar coisas belíssimas de há 15 anos (estou tão cota!)!

:0)

26.2.06

Salve-se quem puder!

Os comentadores-de-estimação do Murcon (de Júlio Machado Vaz) andaram a ler outros blogs e... e... começaram a exercer o... vício... Arf arf arf...
So-co-rro! Fugir, fugir para as montanhas (mas não Cantelães, Não! Não para Vieira do Minho, Gerês: eles devem andar por lá, aos domingos, glup!)
P.S. Será que o Professor se livrou deles de vez (andará o mal espalhado pelas aldeias)?...
: /

Eu vou!

A estes lugares / acontecimentos:
«11º Congresso Educação Hoje», organizado pela Texto Editora - Centro de Reuniões da FIL, a 14 de Março.
«1º Encontro Internacional de Literatura de Viagens» - Matosinhos, entre 22 e 25 de Abril.
Exposição «Instrumentos de Música de Cordas» - Casa Da Música, Fev. a Abril.
Exposição Frida Kahlo - CCB, Março a Maio.
Concerto «A Menina do Mar», Casa da Música, (data ainda a anunciar pela CdaM).



Zuído, a mulher-perplexidade com pátina - VI

No olho direito, à medida que teclava, a sua imaginação criava microfilmes. Na retina, o que nunca vira: rapazes pontapeando um corpo inanimado, as conversas, os planos, a constatação do ferrete horrendo de um crime, o arrastar dos restos de um ser humano para o poço onde ficaria, jazendo... Como fugir à sua imaginação, como esquecer o pesadelo que lhe ecoava no centro nevrálgico dos pensamentos? Os cheiros! Conseguia sentir os cheiros: as latas com restos de comida, o suor das roupas amontoadas no chão, o cheiro selvagem nos cobertores velhos, os excrementos, o cheiro do sangue seco, o cheiro das lágrimas? Como no cemitério, perante a sepultura da avó, todos os cheiros presentes, os da urina, o das chagas, o da água morna do banho, o dos medicamentos, o da comida que lhe dava na boca, passo a passo, o cheiro da gratidão?
Após muito ter pensado, constatara que era isto a condição humana. De alguma forma, todos passariam por lá: a não viverem a velhice, todos teriam de viver a de outros. Se não a da pessoa com quem fizeram votos de fidelidade, a dos pais, a de outros familiares idosos. Por isto se mede um humano. Pela capacidade de dádiva quando a doença ou a idade assomam ao corpo e tudo o que é vivido se concentra em cheiros, em líquidos xaroposos, em noites mal dormidas e povoadas do que o dia trouxe. Ambulâncias, rostos desconhecidos entrando em casa, de gente que transporta macas, gente que aplica curativos, que dá injecções, que recebe o dinheiro, que diz «as melhoras» mesmo sabendo da hipocrisia da frase. Outros há que nos tocam um pulso que é apertado: «Coragem, hein?». Teremos.
É isto a condição humana: fluidos, cheiros, pele, excrementos, medo, força, acreditar. Cabelos húmidos da almofada transpirada, unhas que é preciso cortar, antes que a morte venha e sequem como a todos, lágrimas que é preciso limpar, ternuras macias que é preciso ter na voz, na paciência para ouvir o que há de mais verdadeiro, histórias de antepassados, cabelos que se afagam, membros que se mudam de posição, para que outras chagas não surjam, camisas de noite que se rasgam ao alto, um corte ao longo das costas, rugas, pregas que se desfazem na cama de lençóis bem esticados, para que a pele não se macere, tentamos fotografar aquele rosto, para não o esquecermos (não, nunca queremos esquecer), dedos que se observam porque sabemos que é a última semana...
Pensa-se no que pensa aquela mente: não acredita em Deus, nota-se-lhe um certo medo, quando o invoca às conversas, mas há em tudo uma paz... Que perguntas se fará? Num corpo esgotado haverá ainda lugar à esperança? A que ponto?...
Por onde vagueia a alma de quem foi assassinado? Demora de facto nove meses a deixar o mundo, tantos como esteve a formar-se o corpo-embalagem que nos traz dentro?
A humana condição é não sabermos de quando nos soe a hora. Em curva, berma de estrada, em cama de escaras ou num beco, em plena rua, no metro, com nome e grande séquito em funeral ou sem nome recordado e sem flores na sepultura? Ninguém sabe quando e como.
Ninguém sabe.
Ninguém sabe...
Isso... é bom?
E se em nome desse deus só, "desconhecido", a humana condição não fosse impura, teria valido a pena...
Isto pensado, saiu a ver as aves. O sol já se punha. A noite trazia o frio. Silêncio dos milénios, isto que trazemos dentro e nos impele para as respostas. Por hoje, não pensar mais. Não pensar mais. Pensar dói. As aves são toda uma outra coisa. Voar para longe com elas.
Rir da felicidade suprema de, muito singelamente, não ter dores físicas...

25.2.06

Repito o de sempre: já todos fomos bebés ao colo da mãe. Quando muito, no de outros. Já houve, na vida de todos, quem os tivesse olhado com o sorriso que sobe da ternura. Mornos, aconchegados, perfumados, já todos os humanos foram inequivocamente amados por alguém. Desvelos, preocupações, sintonia de risos e de mimos.
Contudo, alguns transportam consigo as marcas da maldição, como Origami cuja vinca se perdeu entre os nossos dedos, o papel com veios torpes e mal conduzidos. Há quem tenha em si marcas de malformações de alma irrecuperáveis... Por um motivo ou outro, há pessoas que se perdem, "descarrilam", perseguem apenas objectivos maléficos, caminhando pelo mundo disfarçadas de progenitores, marceneiros, políticos, professores, jornalistas, pescadores, advogados ou prostitutos. Não têm marcas no rosto que os identifiquem, mas as futuras gerações serão retratos das plantas da sua "estufa": o viço da boa formação ou a torpeza que o mau íntimo produziu?
Professora há catorze anos, já reconduzi dezenas de vezes miúdos com o esforço suplementar da compreensão. Alguns há que se deixam guiar no sentido do que "está certo", tudo aquilo que, desde a Guerra II é considerado absolutamente necessário à Humanidade para que a coexistência prossiga sem males de maior.
Há, no entanto, alguns que olho com profunda apreensão: os meus olhos perfurados de xoano permitem-me ver longe e sei - tal como sei que quem maquinou o mal o desenvolve dentro do corpo que há-de rebelar-se contra si mesmo em miasmas de putrefacção - que muitas dessas crianças e adolescentes nunca serão seres humanos equilibrados, a distâncias abismais do que possa ser a felicidade.
Os motivos? Passam por:
a) falta de objectivos de vida (a comum preguiça, a sensação de que o mundo lhe deve tudo);
b) a falta de amor próprio (a comum insegurança ou timidez doentias, a falta de afectos dirigidos);
c) a falta de respeito pelo próximo (que engloba os preconceitos, a diminuição do outro no caso da inferiorização, a incapacidade de aceitar o sucesso alheio, sabendo-se que os padrões dos gostos são diferentes e que haverá sempre quem esmague o que é perfeito).
Há miúdos que têm olhos sem vida dentro. Não são gente com gente dentro: mentem, ludibriam; riem do que lhes parece menor e, pior, do que os afixie e lhes mexa com os nivelamentos, obrigando-os a reconhecer que se pode ser excelente: odeiam o sucesso alheio; podem, por outro lado, ser arrogantes, pensando que a vida lhes deve tudo e ninguém lhes dá o devido valor (reconheço, pela escrita, muitos bloggers padecendo destes males, fiéis retratos do país mesquinho que perpetuam; estes últimos, seres inferiores por natureza, precisarão de sistemáticos aplausos como segurança que "legitime" a sua casta infecta. Portugal é o seu solo fértil, o pântano preferencial). Muitos evoluem, mas... pelos piores motivos. Falácia, terrível engano da vaidade! Sobrará o vazio...
Típico dos egoístas: olham o mundo como um lugar que lhes satisfará todos os prazeres e confortos, o ego, a fome (incluindo a de afectos que não souberam conquistar com sinceridade de Alma aberta, antes investindo em babosos discursos hipócritas, licenciosos, pais de toda a falácia: estes são os manipuladores e, se tiverem público, serão os ditadores de modas, os tiranos do futuro).
Conheci crianças sem mãe, sem pai, sem pais, sem uma gota de atenção, sem casacos quentes nem mochilas coloridas (tudo nas suas vidas era cinza), com casa de chão térreo, sem água, com calos e bolhas nas mãos do trabalho, sem força para brilhar, por vezes, rosto colado ao papel, como se eternizassem aquilo que os adultos delas fizeram: seres definhantes, deprimidos, fartos de gritos e de hálito a álcool, de abusos de TODO o tipo. Entre estes miúdos há os que vão procurar - está explicado, a ciência já o fez - vidas sem qualquer hipótese de sucesso, pessoas iguais, pares agressivos, perpetuando a vida da infância e adolescência (quem não conheceu o que é bom, não sabe, muitas vezes, como lá chegar, caindo no ciclo vicioso).
Um professor também pode ensinar a ser feliz e isso passa pelo respeito ao trabalho, às escolas como santuários do amor à ordem e à justiça... Mas....
Mas... há miúdos que, vivendo no meio de tudo o que acima descrevo... BRILHAM com luz interior. Sorriem, apenas, ou mostram com franqueza uma fiada de dentes alvos como neve, rindo do opróbrio que a vida lhes deu. Há seres humanos com garra para vencer a pior morte: a morte interior. Têm alma, fibra, salero, cativam, encantam, trabalham, lutam contra os ódios em volta, senhores de perfeitas noções de justiça, ensinam-nos... Ensinam-me. Aprendo com eles. Humilde, aprendo com eles, revejo a miúda que fui e aquilo a que sobrevivi. Nada de muito grave, se pensarmos que todos têm de ultrapassar as suas adversidades. É isso que nos faz gente com gente dentro. O que não nos mata faz-nos mais fortes.
Conheci muitos miúdos e miúdas que tinham motivos para apedrejar o mundo. Nem olharam para as pedras do chão, mesmo se descalços, entretidos que estavam a observar a abóbada celeste, em busca do seu nicho de pequenas felicidades diárias:
«Eu sou o ...... Tenho doze anos. Tenho braços, tenho pernas, oiço, vejo, sinto. De manhã, danço em frente ao espelho com Bryan Adams gritando "Here I am, This is me, there's nowhere else on Earth I'd rather be".
Haverá sempre muita gente (ou pelo menos alguém) que me ame como sou. Estar na escola é um privilégio. Estar vivo é um privilégio. A vida nada me deve, mas eu devo-lhe uma segunda oportunidade. Quase morri com um tumor cerebral. Estou aqui. Incompleto, mas estou aqui. Mundo, aí vou eu!»
(...)

23.2.06

Da indigência... mental

No carro, ar aquecido, enrolava-me no percurso, desfazendo mistérios, desfiando os porquês do meu dia. O trabalho suplanta-me! Morta de cansaço, repouso, caminho de casa. A noite diz-me que amanhã estarei à altura. Anicho-me entre o ar condicionado e a música, nunca negligenciando a condução, coisa que amo e sempre amarei.
Do rádio, música calma: a única suportável de Madonna. Live to Tell. Viver para contar. Quem o pode dizer, de facto? Quem fica para contar?...
Interrupção do fade away do som: notícias...
Ainda recordando o clip da minha adolescência, quando Madonna era casada com o actor do filme que o "teledisco" (agora, diz-se videoclip) promovia, Sean Penn, um génio da interpretação. Penso em como ele e ela reagiam aos papparazzi, batendo, cuspindo, partindo máquinas. Analiso.
... os jovens... crime... espancamento até à morte... um indigente... Porto.
Hã?... Subo o som do rádio: pedopsiquiatras, notícias do choque de ministros e demais figuras da nação, a queda dos portugueses na realidade que as nossas escolas e as periferias de cidades tão bem demonstram, por melhor que nos seja a fé.
O quê? O quê? Mataram um homem... à pancada? Miúdos? Miúdos? Dez... miúdos entre 12 e 16 anos?... Co-mo?...
A minha mãe informa-me (não vejo tv e não tenho lido blogs nem jornais ou ouvido rádio, tal é o ritmo de trabalho) pelo telefone de que os espancamentos... foram sucessivos. Uma semana? Repita, por favor...?
Uma semana. Espancaram o homem durante uma semana... Um toxicodependente... um travesti...?
Tudo isso, tudo aquilo, o caso, a morte, o homicídio terá sido por... preconceitos?... Meu Deus, é de bradar aos céus! A Bíblia falava destes seres-crianças aberrantes, num certos "fins dos tempos"...
Que se fez?
O que é que não se fez?
Quem falhou?
Porquê?
A que ponto?
Como?...
A notícia acabou. O noticiário acabou. O radialista de serviço, contagiado, fica mudo, diz que vai pôr música que "serene os espíritos"... Na pressa, volta a Live to Tell, de Madonna, onde também as imagens documentam a delinquência e o "homem predador do homem"...
Fico a ouvir, o nó na garganta. Como, meu Deus?...
Quem falhou?
Que pais?
Que progenitores?
Que pais biológicos?
Que professores falharam?
Quem lhes ensinou o ódio?
Como se esquece isto que nos turva os olhos e o discernimento?...
Como?...
É este o mundo para a Inês?... É disto que verá, um dia, à sua volta?
"Tia, conta-me uma historinha de princesas, vá lá...", sentada no meu colo, o seu trono de ternura sem limites. Abismal, o homem-menino, o homem-carrasco... Quem sabe do que nos reservam as crianças que (hoje) amamos, Senhor?...





Live To Tell Lyrics

I have a tale to tell
Sometimes it gets so hard to hide it well
I was not ready for the fall
Too blind to see the writing on the wall
Chorus:
A man can tell a thousand lies
I've learned my lesson well
Hope I live to tell
The secret I have learned,
'till then
It will burn inside of me
I know where beauty lives
I've seen it once, I know the warm she gives
The light that you could never see
It shines inside, you can't take that from me
(chorus)2nd Chorus:
The truth is never far behind
You kept it hidden well
If I live to tell
The secret
I knew then
Will I ever have the chance again
If I ran away,
I'd never have the strength
To go very far
How would they hear the beating of my heart
Will it grow cold
The secret that I hide,
will I grow old
How will they hear
When will they learn
How will they know
(chorus)(2nd chorus)

22.2.06

I.Q., Q.I, whatever... : post fútil c/ brinde-private joke

As circunvoluções (saliências sinuosas do cérebro) que me calharam em sorte, principalmente a segunda c. esquerda - domínio da linguagem - parecem bem ginasticadas. Este mundo fascina-me.
Foi-me "diagnosticado" um Q.I. de 140. Pragmática sem excessos, discretamente vamp e excêntrica (sim, há excêntricos "discretos" por necessidades temporárias de imitação camaleónica até que surja a hora da revelação), gosto de confundir os outros com respostas rápidas e um chicoteante-corrosivo sentido de humor que gosto de ocultar neste blog, onde cultivo uma imagem de literario-depressiva que me diverte e creio produtiva (Ah, D., a produtividade da melancolia!).
Não aprofundei as ciências - que amo - mais do que o essencial, nem as filosofias, nem a literatura. Sobrevoei tudo. No meio em que me movo já estive entre os melhores. Relativamente às turmas, era considerada brilhante. A minha cultura desactualizou-se bastante, embora saiba quem foram e em que se destacaram outros seres humanos como Margaret Mead, Auguste Comte, Volta, Esculápio, Thomas Alva Edison, Magritte, Le Corbusier, etc., etc, etc., sendo, contudo, sofrível (um quase-desastre!) quanto à Geografia - azimutes mal traçados? - e às matemáticas (a inépcia de Truman Capote nesta área acalmou-me e, tal como ele, leio livros às avessas!).
Destaco-me pelo uso sinestésico das palavras e pelas perfeitas imitações dos pormenores, tiques, andares, modismos de linguagem dos outros (os alunos adoram essa faceta histriónica). Sorrio quando colegas mais novos me tomam - oh, infelizes! - por apagada, anti-social, sem opinião, depressiva, crítica sem motivos, rabuja, atropelável. Normalmente, um olhar a direito nos olhos mostra bem a fibra, o carácter forte que se traz sob a pele. Não levantando a voz, assusto com o tom incisivo de quem não se deixa asfixiar.
Espero a minha melhor hora: a sorte protege os audazes e, se a vida não se me encurtar, tenho audaciosos planos para os próximos vinte anos. Um dos mitos que me fascinam é o da Gata Borralheira (Cenicienta, Cendrillon, Cinderella) e aprecio a tenacidade de quem se ergue das cinzas. Sigo discretamente pelo mundo. Esperar não é cruzar os braços. Em carteira, a par com a óbvia timidez (odeio atitudes arrivistas de deslarados e cocottes-de-arrebita-saia-muita-parra-pouca-uva-ai o leito, ai o leito, eu sou o máximo no leito! Pois pois pois pois. Pois pois pois. Pois. Aham.) ... timidez, dizia, uma coragem que me faz corar (contrasenso?) e fascinar por "ter ousado".
Em celebração, amanhã saio com as botas altas de verniz preto, a saia drapeada preta pelo joelho,a blusa gola-mao de cetim preto e a enorme bolsa de tiracolo de forro rosa-choque. Ponho os longos brincos de pedrarias pretas, a longa écharpe vaporosa com brilhos discretos e inundada do meu perfume Happy da Clinique e um casaco pelo tornozelo, divertindo-me como uma Cruella De Ville cujo sorriso com covinhas de encanta-bebés a trai a toda a hora.
O privilégio do invulgar não é para todos os dias e merece, por isso, ser saboreado. Ter um Q.I. ... jeitoso ajuda-me a surpreender quem me julga apagada. Ponderada e senhoril, sou uma subversiva disfarçada que se diverte muito com o mundo previsível e sem brilho.
Só me chateia a Primavera: alergia à estupidez natural de umbigo-ao-léu. Já não há classe nenhuma... Caminho em Vitória de Samotrácia (tenho uns pés lindíssimos!)
Não entendo ainda porque se insiste em insultar o meu mundinho circunvolucionário...
140 não é para todas as caixas cranianas, convenhamos.
Só sou o que pareço quando eu quero... Como uma private eye sabendo mais do que aquilo que admite, não há expressão mais perfeita do que esta: low profiiiiile.
;0)
P.S. Prometo voltar a parecer deprimida e compostinha. Não é tão mais chique?

Zuído, a mulher-perplexidade com pátina - V

Corpo oblíquo, lia um cartaz. Homem com uma taça de champanhe que o dava a beber a uma mulher que tinha um cão de regaço com diadema sobre a cabeça. Com a inclinação de cabeça forrest-gump'iano - que também já apreciara em alguns cães expressivos - manteve fixo o olhar e derramou à direita o pescoço. Decidira ver as personagens na horizontal. Os olhos percorreram, então, as pernas dos dois humanos. Toda a arquitectura dos corpos lhe enchia os dias. A ser parecida com os seus, seria excelente ilustradora (recordava até como reproduzira imagens a lápis de carvão, sendo muito fiel ao original), mas faltavam-lhe o traço, a mestria de quem redesenha o mundo a sépia. Por isso, optara por recolorir o quotidiano com palavras. Descrevia o movimento dos cheiros, tacteava os sons que lhe percutiam a pele, dizia ácidas ou cordatas as cores, via tão nitidamente o vento que a sua passagem lhe humedecia os olhos, abertos não à secura mas sim à comoção. Não suportava nem o sofrível nem as frivolidades.
Escrevia como se compõe, cada polpa de dedo pequenino que o seu amor mordera na longitude em tributo, um martelo doce sobre cada tecla, o alfabético piano que quisera afagar para sempre. Em dias bons, sentia tudo: era ver uma mulher de trinta anos e mais de meia década - andar ágil de bailado, rosto ameninado, testa ampla, o olhar redondo e olheirento de Proust, o mais adorável "ovo-de-Páscoa"! - deslizar os dedos por bancos de jardim de granito, mupis de paragens de autocarro, caixotes do lixo de metal, rugosidades de cascas de árvore, prender em argola junto ao solo a mão em volta de uma urze, um tojo, para percorrer os raminhos restolhantes rshch shch rshchchchtttttttt. Abrir num riso o rosto, testa recuada do prazer da cócega. Acontecia-lhe quase encostar o ouvido ao copo que enchia de água. Quem a visse, em certos dias, diria que estava na Graça de Deus. A culpa fora de Assunção, uma mulher minúscula já sepultada no talhão de uma irmandade sem nome à vista: vestia de cinzento, usava óculos com aros antigos, ensinou-lhe o seu credo: amar a todas as coisas ainda mais do que a si. As Palavras-Maiores eram, invariavelmente, estas:
Pai Nosso, que Estais no Céu,
Santificado seja o Vosso nome.
Venha a nós o Vosso reino.
Seja feita a Vossa vontade,
assim na Terra como no Céu.
O pão nosso de cada dia
Nos dai hoje.
Perdoai-nos as nossas ofensas,
assim como nós perdoamos
a quem nos tem ofendido.
Não nos deixeis cair em tentação.
Mas Livrai-nos do mal.
Disto gostava: seja feita a Vossa vontade.
Seja feita a Vossa vontade.
Seja feita a Vossa vontade.
(Se o meu amado leitor não entendeu esta música subtil das palavras, sussurre, fale em gutural voz blues, diga alto ou em cicio, diga ao ouvido de quem ame, diga ao seu filho, aceite. Aceite. Aceite o que não puder mudar. Olhos fechados até que as sombras azuis cubram tudo ao abrir das pálpebras, como olhar o mundo pela primeira vez, inalar, sentir o arrepio do terror de estar vivo.)
« - Seja feita a Vossa vontade» - murmurou ela, enquanto, pescoço tombado, observava a lonjura da paisagem por detrás do casal da publicidade no mupi da paragem de autocarro. Uma idosa que se aproximara viu-lhe nos dedos quase dentro do bolso o terço, mediu-lhe o olhar perdido, extático, sorriu, temerosa, deixando-a a sós, uma pergunta morrendo-lhe nos lábios: que importava a hora do autocarro? Alguém invocava Deus. Exactamente como ela quereria mais vezes, a velhinha - Assunção renascida? - afastou-se, deixando-a à chuva miudinha que principiava a cair. Deixou-a como ela pedia no momento: Senhor, dá-me o silêncio. Não me obrigues a ouvir-me, litania contra o mundo. Faz-me assim esta sombra, liberta-me da que sou. E contudo, seja feita a Tua vontade...
Sorriu à chuva e partiu, passo breve, a mão esquerda afagando o muro de granito à medida que se afastava. Como na infância, pulmões cheios de ar até à dor, satisfazer aos dedos a gula do toque em tudo o que está.

De um concurso literário na net, há uns tempos


março 16, 2004
Sentia-se bem ali.
Recostava o corpo, esticava-o conforme lhe apetecesse conforto ou preferisse o espreguiçamento. Manteve sempre os olhos fechados. Ouvia o som da água, deixava que os ouvidos se preenchessem desse brlup, brlup,das formas esféricas do líquido escorrente. Abria num espasmo os dedos, fechava-os de novo.
Pode dizer-se que a boca saboreava, embora estivesse fechada a maior parte do tempo. Onde quer que tocasse, tudo era morno, receptivo, macio. Não conseguia sentir cheiros por ter o nariz também submerso na água morna, mas sabores e cheiros confundem-se. Cheirava-lhe ao que lhe sabia e sabia bem, a água.
As pernas adormeciam-lhe, por vezes. Provavelmente esticava-se muito, pois aquele invólucro que lhe tomava o corpo já se moldava demasiado às suas formas. Adoptou posição mais cómoda, esticando um dos braços para cima, poisando um dos tornozelos de encontro ao joelho da outra perna, inclinou para trás a cabeça, meteu na boca um polegar contra o palato, gostou da sucção a que obrigara a boca.
As movimentações na água aumentavam, os sons de longe fizeram-se mais ácidos, sentia o frémito, as vibrações que o líquido tão bem conduz aos ouvidos, um tump tump, como pancadinhas que um vizinho desse no tecto, logo abaixo do espaço onde se reclinava o seu corpo maleável. Deixou-se ficar, adormeceu.
O barulho aumentara e foi-se instalando uma perturbação, um agitar do ambiente. Preferiu movimentar-se ao encontro do outro lado da banheira onde estava. Voltou-se como pôde, encostou a um canto o nariz, segurou entre um dos braços um joelho, enrolou-se em perfeita posição redonda, fechou-se sobre si para fugir aos sons. Dormitou, mas as paredes começavam a incomodar, comprimiam as suas formas.
O mau estar de há pouco aumentava, como se fosse preciso acordar de um sono reparador e de novo a vida se impusesse como dura realidade. Irritava-se, mas continuou a procurar a melhor posição, não queria sair do seu paraíso artificial, o sono por momentos, a narcose líquida, manter-se ali indefinidamente, até ser impossível ficar mais.
Agora, com os sons, vinha-lhe um estremecimento de vozes em vibração. Havia sons conhecidos, sons novos, uns agudos, outros graves, ácidos e adocicados, harmoniosos e estridentes, finos e breves, longos e engrossados por outros em conjunto. Pestanejava, movia-se, mimava movimentos, recostava-se na água morna, tocou o umbigo, o baixo ventre.
A indisposição forçava a nova busca de posição cómoda. Agora, com os sons, aumentava a turbulência, tacteava-se e sentia um movimento de fora, vibratório, insistente, um ir e vir como embalos, uma insistência em tirar-lhe o fechamento aos olhos. Pestanejava, movia-se, angustiava-se, queria que se prolongasse aquela cura de sono, precisava dela.
Depois, vieram as sensações de picadelas na pele, um formigueiro feito de uma ansiedade só. Aquele era um estranho sonho, tão vívidas todas as sensações... insistia em fechar os olhos. De resto, estava escuro naquele lugar, o que lhe garantia a continuação do sono até que um acordar espontâneo impediria o fechamento continuado aos olhos. Movimentos suaves iam e vinham.
Um estremecimento! Sentira-o. Com esse abalo, os sons. Algo tremera e algo soara. A mente nada analisava. Recebia, mas não interpretava. Novo abalo! Novo som... Num estertor, moveu-se, em agitações de quem se assustou, a surpresa dos movimentos impostos ao corpo quando o instinto da sobrevivência avisa do perigo.
Tudo tremeu então e, de seguida, o corpo era comprimido contra as paredes do lugar onde dormia submerso, alguma agitação de fora da casa obrigava a despertar forçado. O corpo dera várias voltas, à procura de conforto e até houve uma sensação de chamada para um movimento centrípeto, forçado a um ponto só de apoio. Os sons, de novo, vários sons antigos e outros novos, quase ameaçadores, repetitivos, respondendo aos outros que, a espaços, se faziam terríveis, altíssimos.
À medida que o corpo era forçado a sair do torpor, a agitação era quase insuportável. No sonho, havia movimentos da banheira contra a pele, ondulações da água, borbulhar, estridências, batimentos, baques surdos, por vezes violentos. A um movimento mais abrupto, abrira os olhos, mas nada lhe respondeu do silêncio.
Tocara de novo o ventre, a dor funda lá instalada, os sons ameaçadores, um quase terror não assumido mas o pressentir do fim do sono reparador, do sonho estável.
A água! A água arrastava-lhe o corpo na torrente, um vórtice abrira-se, o corpo colava-se então às paredes. O movimento era agora centrífugo e levava-lhe o corpo na deslocação de ar, uma sucção morna, os sons cada vez mais perto. Os movimentos de compressão em volta, sons mais fortes, estridentes, altos, agressivos, ameaças! A parte de cima do corpo centrara-se num local gelado, forte como ventosa que comprimia o corpo num quase esmagamento lento, demorado, terrífico. Depois, escorregou, seguro por pinça forte como tenaz.
Frio! Muito frio! O corpo seguiu a cabeça, deslizou para o ar gelado, o mundo deu uma volta, os olhos abriram-se, asfixiava. Em vez do líquido entrou algo menos espesso nos pulmões, contundente, numa golfada, redondo, enchendo espaço, alargando tudo. Dor física, sabor na boca, cheiros, a um só movimento de instrumentos pelo nariz acima, coisas a roçarem-lhe a pele enrugada da água. Doooooor...
Novo som, ainda pior, mais perto, dentro de si, uma voz, a sua! Gritos, tremuras, dor, sabor acre, de sangue, de fluidos, frio... O corpo foi envolto em tecido branco, enrolado com doçura, levado para outro lado, já adormecido do cansaço. Novos sons altos, dores... Um outro som, suave, conhecido, musical, paz...

«- Mamã, aqui tem o seu bebé! Vasco, sê bem vindo ao mundo: apresento-te a tua mãe!»

Inês Alva
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56 (P) - Código de seriação atribuído pelo autor do blog organizador. Lembro-me de ter esperado pela meia-noite menos dois para publicar o meu texto! Nem o facto de ser o que aparecia no topo me safou... Damn'... Pronto, lá ofereci ao João - o muito simpático vencedor - as "Dez Jóias do Conto Russo"...
Raios, tenho de aprender a escrever bem...
;0)

Obstinações...

Tenho amigos capazes das apostas mais loucas. Pronto, concedo: todas as noites aqui vem alguém de Curitiba, no Paraná! E os EUA, a Itália, A Indonésia, o Japão... e Sintra, meu Deus, e Sintra?! Que cosa más rara...
Ok, ok, ganharam. Escolham lá o restaurante. Pode ser aí em Lx, à falta de melhor.

21.2.06

A história trágica do «pro-activo»



É um termo hoje corrente no dialecto da gestão. Não há gestor 'actualizado' que não use o «pro-activo» uma boa dúzia de vezes. Mas a maioria de nós não imagina sequer como surgiu o conceito. O seu berço é trágico, e Claus Moller conta a história com a seriedade adequada que gera um silêncio de cortar à faca. Foi Viktor Frankl, um psiquiatra e neurologista judeu, que gerou o termo. Ele era um judeu austríaco famoso conhecido por ter cunhado nos anos 30 o termo «existencialismo». Foi preso pelos nazis e encarcerado durante três anos em Auschwitz, Dachau e outros campos de concentração. Foi naquele contexto trágico que idealizou a atitude «pro-activa». Toda a sua família foi dizimada nos campos. Mas a sua atitude básica não mudou. Ele designou-a de «última das liberdades humanas - aquela que é impossível liquidar». «O nosso maior poder pessoal é a nossa liberdade em escolher a resposta. Não é o que nos acontece que nos magoa, é a nossa resposta a isso que o faz!», dizia ele. Foi esta sua atitude positiva de força interior que o manteve de coluna direita e que lhe permitiu aguentar o sofrimento extremo. Em liberdade, teorizou o assunto: a pro-actividade é basicamente a responsabilidade em saber escolher a resposta e em evitar ter a reacção 'pavloviana' do ódio inconsequente ou da servidão. Viktor Frankl escreveria, depois da derrota nazi e do fim do Holocausto, uma obra que o tornaria ainda mais famoso - A Busca de Sentido pelo Homem, que seria traduzida desde 1946 em 23 línguas e venderia mais de 9 milhões de cópias. Ele fundaria em Viena, a sua cidade natal, uma escola de psicoterapia e criaria o Viktor Frankl Institut, tendo falecido em 1997.

Daqui.

I *

«um dia destes

Inês Alva, querida:

A expressão nos teus olhinhos é como o algodão, não engana: tu e o teu maninho , na fotografia de infância, parecem os bórgias - em ambos se notava já a demência degenerativa que haveria de os assolar na idade adulta e que, no teu caso, minha pobre querida, te haveria de dar para o permanente delírio, à espreita das vidinhas boas das outras, que têm aquilo que tu nunca terás: um homem e filhos, para gozar e amar. Eu sei que deve ser difícil não poderes acordar com alguém que te ame a teu lado, e não poderes gerar descendência, sangue do teu sangue, e não saberes o que é o cheiro da pele de alguém que saiu de dentro de ti, não sentires a doçura no olhar do teu homem, ao ver-te amamentar... eu compreendo a tua amargura e a tua solidão, minha amiga. Ninguém gosta de ser enganado. Por isso odeias tanta gente e vives a tua vidinha patética mergulhada na existência de outras mulheres que te desprezam e se riem de ti com gosto, a maluquinha da blogoesfera, a tonta, a tolinha de Azimutes. Um dia destes, minha cara, quando menos esperares, tomo a auto-estrada do norte e espero-te à porta da escola, faço-te uma visita, vamos conversar. Vejo que estás amarga, que estás a perder a noção da realidade, que te estás a tornar um perigo para os teus alunos, que não te conhecem ou que talvez não tenham reparado no teu olhar de Rosemary's Baby. Precisas de desabafar, minha amiga. Podes fazê -lo comigo, serei compreensiva, prometo. E, olha, um conselho: eu sei que precisas de conversar, mas não vale a pena abrires os comentários, ninguém te diz nada, pobre, ninguém quer saber, a não ser aquela meia dúzia que se diverte com a tua loucura (poupa-te a mais essa humilhação, pelo menos; é muito confrangedor). Também não vale a pena vires com a conversa do "amigo imaginário" - é patética, minha querida e, convenhamos, ninguém acredita nessas balelas de solteirona parola, com imaginação a mais e sexo a menos. Ficamos assim, então. Um dia destes.

bjinho»


II *


«ah ah ah!

Cara Inês Alva,

ao contrário de si, que finge ter amigos que lhe dão conta dos blogues que não lê, eu tenho de facto amigos que me avisam a cada vez que você disparata e resolve meter-me ao barulho naquele seu blog esquizofrénico. Soube agora que me acusa de lhe ter plagiado três palavras e ameaça-me com a SPA! O que eu já me ri hoje à sua conta, Inês! Você é impagável nos seus delírios, não há dúvida.... Obrigada por estes pequenos momentinhos de boa disposição. :) Agora, um pequeno conselho: Ponha-se a mexer e faça bicha na SPA à primeira hora da manhã, porque a dita frase (e outras) vai MESMO sair em papel, ao contrário do seu arrazoado ilegível, que não sai em lado nenhum. Tenha juízo e olhe-se ao espelho! Mas quem é que se iria dar ao trabalho de ler e copiar (????) a sua óbvia falta de talento, a sua verborreia parola a que ninguém liga a mínima? Pobre coitada, três anos depois, e ainda nesta vidinha...deve ser um desconsolo. As melhoras, é o que lhe desejo.

Cumprimentos»

* De um ser vivo que se identificou: óbvias simpatias pelo revisionismo. O Tempo há-de fazer-lhe a vontade: apagará o seu nome. Eu já.