22.2.06

De um concurso literário na net, há uns tempos


março 16, 2004
Sentia-se bem ali.
Recostava o corpo, esticava-o conforme lhe apetecesse conforto ou preferisse o espreguiçamento. Manteve sempre os olhos fechados. Ouvia o som da água, deixava que os ouvidos se preenchessem desse brlup, brlup,das formas esféricas do líquido escorrente. Abria num espasmo os dedos, fechava-os de novo.
Pode dizer-se que a boca saboreava, embora estivesse fechada a maior parte do tempo. Onde quer que tocasse, tudo era morno, receptivo, macio. Não conseguia sentir cheiros por ter o nariz também submerso na água morna, mas sabores e cheiros confundem-se. Cheirava-lhe ao que lhe sabia e sabia bem, a água.
As pernas adormeciam-lhe, por vezes. Provavelmente esticava-se muito, pois aquele invólucro que lhe tomava o corpo já se moldava demasiado às suas formas. Adoptou posição mais cómoda, esticando um dos braços para cima, poisando um dos tornozelos de encontro ao joelho da outra perna, inclinou para trás a cabeça, meteu na boca um polegar contra o palato, gostou da sucção a que obrigara a boca.
As movimentações na água aumentavam, os sons de longe fizeram-se mais ácidos, sentia o frémito, as vibrações que o líquido tão bem conduz aos ouvidos, um tump tump, como pancadinhas que um vizinho desse no tecto, logo abaixo do espaço onde se reclinava o seu corpo maleável. Deixou-se ficar, adormeceu.
O barulho aumentara e foi-se instalando uma perturbação, um agitar do ambiente. Preferiu movimentar-se ao encontro do outro lado da banheira onde estava. Voltou-se como pôde, encostou a um canto o nariz, segurou entre um dos braços um joelho, enrolou-se em perfeita posição redonda, fechou-se sobre si para fugir aos sons. Dormitou, mas as paredes começavam a incomodar, comprimiam as suas formas.
O mau estar de há pouco aumentava, como se fosse preciso acordar de um sono reparador e de novo a vida se impusesse como dura realidade. Irritava-se, mas continuou a procurar a melhor posição, não queria sair do seu paraíso artificial, o sono por momentos, a narcose líquida, manter-se ali indefinidamente, até ser impossível ficar mais.
Agora, com os sons, vinha-lhe um estremecimento de vozes em vibração. Havia sons conhecidos, sons novos, uns agudos, outros graves, ácidos e adocicados, harmoniosos e estridentes, finos e breves, longos e engrossados por outros em conjunto. Pestanejava, movia-se, mimava movimentos, recostava-se na água morna, tocou o umbigo, o baixo ventre.
A indisposição forçava a nova busca de posição cómoda. Agora, com os sons, aumentava a turbulência, tacteava-se e sentia um movimento de fora, vibratório, insistente, um ir e vir como embalos, uma insistência em tirar-lhe o fechamento aos olhos. Pestanejava, movia-se, angustiava-se, queria que se prolongasse aquela cura de sono, precisava dela.
Depois, vieram as sensações de picadelas na pele, um formigueiro feito de uma ansiedade só. Aquele era um estranho sonho, tão vívidas todas as sensações... insistia em fechar os olhos. De resto, estava escuro naquele lugar, o que lhe garantia a continuação do sono até que um acordar espontâneo impediria o fechamento continuado aos olhos. Movimentos suaves iam e vinham.
Um estremecimento! Sentira-o. Com esse abalo, os sons. Algo tremera e algo soara. A mente nada analisava. Recebia, mas não interpretava. Novo abalo! Novo som... Num estertor, moveu-se, em agitações de quem se assustou, a surpresa dos movimentos impostos ao corpo quando o instinto da sobrevivência avisa do perigo.
Tudo tremeu então e, de seguida, o corpo era comprimido contra as paredes do lugar onde dormia submerso, alguma agitação de fora da casa obrigava a despertar forçado. O corpo dera várias voltas, à procura de conforto e até houve uma sensação de chamada para um movimento centrípeto, forçado a um ponto só de apoio. Os sons, de novo, vários sons antigos e outros novos, quase ameaçadores, repetitivos, respondendo aos outros que, a espaços, se faziam terríveis, altíssimos.
À medida que o corpo era forçado a sair do torpor, a agitação era quase insuportável. No sonho, havia movimentos da banheira contra a pele, ondulações da água, borbulhar, estridências, batimentos, baques surdos, por vezes violentos. A um movimento mais abrupto, abrira os olhos, mas nada lhe respondeu do silêncio.
Tocara de novo o ventre, a dor funda lá instalada, os sons ameaçadores, um quase terror não assumido mas o pressentir do fim do sono reparador, do sonho estável.
A água! A água arrastava-lhe o corpo na torrente, um vórtice abrira-se, o corpo colava-se então às paredes. O movimento era agora centrífugo e levava-lhe o corpo na deslocação de ar, uma sucção morna, os sons cada vez mais perto. Os movimentos de compressão em volta, sons mais fortes, estridentes, altos, agressivos, ameaças! A parte de cima do corpo centrara-se num local gelado, forte como ventosa que comprimia o corpo num quase esmagamento lento, demorado, terrífico. Depois, escorregou, seguro por pinça forte como tenaz.
Frio! Muito frio! O corpo seguiu a cabeça, deslizou para o ar gelado, o mundo deu uma volta, os olhos abriram-se, asfixiava. Em vez do líquido entrou algo menos espesso nos pulmões, contundente, numa golfada, redondo, enchendo espaço, alargando tudo. Dor física, sabor na boca, cheiros, a um só movimento de instrumentos pelo nariz acima, coisas a roçarem-lhe a pele enrugada da água. Doooooor...
Novo som, ainda pior, mais perto, dentro de si, uma voz, a sua! Gritos, tremuras, dor, sabor acre, de sangue, de fluidos, frio... O corpo foi envolto em tecido branco, enrolado com doçura, levado para outro lado, já adormecido do cansaço. Novos sons altos, dores... Um outro som, suave, conhecido, musical, paz...

«- Mamã, aqui tem o seu bebé! Vasco, sê bem vindo ao mundo: apresento-te a tua mãe!»

Inês Alva
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56 (P) - Código de seriação atribuído pelo autor do blog organizador. Lembro-me de ter esperado pela meia-noite menos dois para publicar o meu texto! Nem o facto de ser o que aparecia no topo me safou... Damn'... Pronto, lá ofereci ao João - o muito simpático vencedor - as "Dez Jóias do Conto Russo"...
Raios, tenho de aprender a escrever bem...
;0)

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