22.2.06

Zuído, a mulher-perplexidade com pátina - V

Corpo oblíquo, lia um cartaz. Homem com uma taça de champanhe que o dava a beber a uma mulher que tinha um cão de regaço com diadema sobre a cabeça. Com a inclinação de cabeça forrest-gump'iano - que também já apreciara em alguns cães expressivos - manteve fixo o olhar e derramou à direita o pescoço. Decidira ver as personagens na horizontal. Os olhos percorreram, então, as pernas dos dois humanos. Toda a arquitectura dos corpos lhe enchia os dias. A ser parecida com os seus, seria excelente ilustradora (recordava até como reproduzira imagens a lápis de carvão, sendo muito fiel ao original), mas faltavam-lhe o traço, a mestria de quem redesenha o mundo a sépia. Por isso, optara por recolorir o quotidiano com palavras. Descrevia o movimento dos cheiros, tacteava os sons que lhe percutiam a pele, dizia ácidas ou cordatas as cores, via tão nitidamente o vento que a sua passagem lhe humedecia os olhos, abertos não à secura mas sim à comoção. Não suportava nem o sofrível nem as frivolidades.
Escrevia como se compõe, cada polpa de dedo pequenino que o seu amor mordera na longitude em tributo, um martelo doce sobre cada tecla, o alfabético piano que quisera afagar para sempre. Em dias bons, sentia tudo: era ver uma mulher de trinta anos e mais de meia década - andar ágil de bailado, rosto ameninado, testa ampla, o olhar redondo e olheirento de Proust, o mais adorável "ovo-de-Páscoa"! - deslizar os dedos por bancos de jardim de granito, mupis de paragens de autocarro, caixotes do lixo de metal, rugosidades de cascas de árvore, prender em argola junto ao solo a mão em volta de uma urze, um tojo, para percorrer os raminhos restolhantes rshch shch rshchchchtttttttt. Abrir num riso o rosto, testa recuada do prazer da cócega. Acontecia-lhe quase encostar o ouvido ao copo que enchia de água. Quem a visse, em certos dias, diria que estava na Graça de Deus. A culpa fora de Assunção, uma mulher minúscula já sepultada no talhão de uma irmandade sem nome à vista: vestia de cinzento, usava óculos com aros antigos, ensinou-lhe o seu credo: amar a todas as coisas ainda mais do que a si. As Palavras-Maiores eram, invariavelmente, estas:
Pai Nosso, que Estais no Céu,
Santificado seja o Vosso nome.
Venha a nós o Vosso reino.
Seja feita a Vossa vontade,
assim na Terra como no Céu.
O pão nosso de cada dia
Nos dai hoje.
Perdoai-nos as nossas ofensas,
assim como nós perdoamos
a quem nos tem ofendido.
Não nos deixeis cair em tentação.
Mas Livrai-nos do mal.
Disto gostava: seja feita a Vossa vontade.
Seja feita a Vossa vontade.
Seja feita a Vossa vontade.
(Se o meu amado leitor não entendeu esta música subtil das palavras, sussurre, fale em gutural voz blues, diga alto ou em cicio, diga ao ouvido de quem ame, diga ao seu filho, aceite. Aceite. Aceite o que não puder mudar. Olhos fechados até que as sombras azuis cubram tudo ao abrir das pálpebras, como olhar o mundo pela primeira vez, inalar, sentir o arrepio do terror de estar vivo.)
« - Seja feita a Vossa vontade» - murmurou ela, enquanto, pescoço tombado, observava a lonjura da paisagem por detrás do casal da publicidade no mupi da paragem de autocarro. Uma idosa que se aproximara viu-lhe nos dedos quase dentro do bolso o terço, mediu-lhe o olhar perdido, extático, sorriu, temerosa, deixando-a a sós, uma pergunta morrendo-lhe nos lábios: que importava a hora do autocarro? Alguém invocava Deus. Exactamente como ela quereria mais vezes, a velhinha - Assunção renascida? - afastou-se, deixando-a à chuva miudinha que principiava a cair. Deixou-a como ela pedia no momento: Senhor, dá-me o silêncio. Não me obrigues a ouvir-me, litania contra o mundo. Faz-me assim esta sombra, liberta-me da que sou. E contudo, seja feita a Tua vontade...
Sorriu à chuva e partiu, passo breve, a mão esquerda afagando o muro de granito à medida que se afastava. Como na infância, pulmões cheios de ar até à dor, satisfazer aos dedos a gula do toque em tudo o que está.

Sem comentários: