28.2.06

«A Expressão dos Afectos»



de António Mega Ferreira, Assírio & Alvim, 2001.



Às páginas 115, abre-se aos nossos olhos o título:
«O Homem que inventou Borge
[Sempre que algo sobre Borges me cai sob o olhar, pronuncio, em surdina e por vício crónico de sotaques Hrrórrhéh Luiss Bórrheh. Se é exactamente assim, ignoro. Sei, isso sei, que os latinos do castelhano de fora da Península Ibérica ciciam mais os "ésses" e há sons aspirados, como o h dos andaluzes...
Borges é, de longe o mais difícil autor que li, tirando Pascal Quignard, um outro Da Vinci da Literatura, da História, da Filosofia, da Etimologia... Descobri-o no fim do ano lectivo de 98/99*, o mesmo ano de quinze livros lidos e doze deixados algures pelo meio. Quignard é de tal forma um dos meus mestres que lhe prestarei, um dia, a homenagem que é ler todas as suas obras. Acalento, ainda, outros projectos a propósito. Singelezas.]
O conto de Mega Ferreira explora a questão da alteridade de um autor. Haver, por nós, um outro eu - o próprio Deus por nós? - que cria a obra - O Livro, o único alguma vez escrito, palimpsesto das ideias de todos os que anseiam encontrar o aleph (explica-se n' O Aleph de Borges que este seria o lugar "onde estão, sem se confundirem, todos os lugares do mundo, vistos de todos os ângulos").
Pierre Menard existiu, de facto?
Ao (re)escrever o Quixote, Menard terá reescrito Miguel de Cervantes Saavedra?
Sempre que há criação, ela já terá existido avant la lettre?
Será cada criador apenas um precursor de um outro, sendo que se o primeiro referido se reveste de prestígio - porque foi o primeiro na criação - ele tem prestígio apenas porque existe um outro que, não tentando plagiá-lo, o recria?
Pode existir um "ghost-writer"?
O texto adensa-se: revisita Proust, Zenão de Eleia, Leibniz, Montaigne, aponta laivos de Nietzsche e Zoroastro (Zaratustra), Pascal, Paul Valéry, Mallarmé...
« (...) E as admiráveis páginas consagradas por Pascal ao jogo e ao risco prendem-se enigmaticamente com a citação do D. Quixote que acima fizemos. Como distinguir a certeza da incerteza, o ganho do risco? Atente-se nesta frase: « si vous gagnez, vous gagnez tout, et si vous perdez, vous ne perdez rien.» Pascal refere-se a um aposta específica: a da existência de Deus. Mas não é o projecto de D. Quixote isso mesmo, uma aposta na presciência divina, a certeza de que um Livro existe, e só um, e que esse Livro é revelado por Deus, e só por ele? E não é a Deus que se entrega, in fine, o cavaleiro andante ao qual Menard se assimila? Como não ler os fragmentos citados de Pascal, tal como Pierre Menard indiscutivelmente os escreveu? (...)»
Percebe-se, então, ao último parágrafo da página 122 e no prolongamento da página 123 que «a atitude do escritor francês [Menard] parte de dois pressupostos: (...)».
[Aqui, a água que cresce na boca dos curiosos acelera a rapidez dos olhos correndo a folha, o dedo indicador direito pronto para voltar nova página, como se ali estivesse A Revelação... A fazer nova citação que, como todas é castrante, mais merecedor me parece que cada um se dedique, se gosta destas problemáticas, a procurar o livro.]
Numa nota final à obra, A. Mega Ferreira explica que nesta versão «se vai mais longe na "ficção exploratória" ensaiada num extenso artigo publicado em 1986 no DN, por ocasião da morte de Jorge Luis Borges.»
[Para aguçar apetites de mentes inquietas, regressemos, por segundos, ao conto da obra que dá título a este post e que me fascinou. Mega Ferreira faz "a" surpreendente revelação na página 134:]
«Numa tarde de Primavera de 1980, assisti, num dos auditórios da Universidade de Chicago, a uma das muitas conversas com que Borges entretinha a curiosidade de estudantes e estudiosos da sua obra, durante essa longa permanência nos Estados Unidos. Pierre Menard veio à conversa.
(...)
Borges ficou absorto, com o olhar opaco perdido no espaço. Depois (...) »
[Ler, ler imperiosamente: a resposta (ao enigma?) está, como sempre esteve, no título! A culpa é sempre, sempre do mordomo?]
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* A vida de um professor conta-se em anos lectivos. Este, foi o único da quase-depressão, enterrada num inferno que me recuso a ver como parte do meu país. Ler foi - por oposição à narcose da fuga à realidade que podem ser os anti-depressivos - o meu mergulho nas águas geladas da sanidade mental. Tornei-me tão forte que, recordo, cheguei a conseguir ler umas linhas do intragável A. Lobo Antunes sem posterior paragem digestiva... (E não, D. não lamento nada...)

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