26.2.06

Zuído, a mulher-perplexidade com pátina - VI

No olho direito, à medida que teclava, a sua imaginação criava microfilmes. Na retina, o que nunca vira: rapazes pontapeando um corpo inanimado, as conversas, os planos, a constatação do ferrete horrendo de um crime, o arrastar dos restos de um ser humano para o poço onde ficaria, jazendo... Como fugir à sua imaginação, como esquecer o pesadelo que lhe ecoava no centro nevrálgico dos pensamentos? Os cheiros! Conseguia sentir os cheiros: as latas com restos de comida, o suor das roupas amontoadas no chão, o cheiro selvagem nos cobertores velhos, os excrementos, o cheiro do sangue seco, o cheiro das lágrimas? Como no cemitério, perante a sepultura da avó, todos os cheiros presentes, os da urina, o das chagas, o da água morna do banho, o dos medicamentos, o da comida que lhe dava na boca, passo a passo, o cheiro da gratidão?
Após muito ter pensado, constatara que era isto a condição humana. De alguma forma, todos passariam por lá: a não viverem a velhice, todos teriam de viver a de outros. Se não a da pessoa com quem fizeram votos de fidelidade, a dos pais, a de outros familiares idosos. Por isto se mede um humano. Pela capacidade de dádiva quando a doença ou a idade assomam ao corpo e tudo o que é vivido se concentra em cheiros, em líquidos xaroposos, em noites mal dormidas e povoadas do que o dia trouxe. Ambulâncias, rostos desconhecidos entrando em casa, de gente que transporta macas, gente que aplica curativos, que dá injecções, que recebe o dinheiro, que diz «as melhoras» mesmo sabendo da hipocrisia da frase. Outros há que nos tocam um pulso que é apertado: «Coragem, hein?». Teremos.
É isto a condição humana: fluidos, cheiros, pele, excrementos, medo, força, acreditar. Cabelos húmidos da almofada transpirada, unhas que é preciso cortar, antes que a morte venha e sequem como a todos, lágrimas que é preciso limpar, ternuras macias que é preciso ter na voz, na paciência para ouvir o que há de mais verdadeiro, histórias de antepassados, cabelos que se afagam, membros que se mudam de posição, para que outras chagas não surjam, camisas de noite que se rasgam ao alto, um corte ao longo das costas, rugas, pregas que se desfazem na cama de lençóis bem esticados, para que a pele não se macere, tentamos fotografar aquele rosto, para não o esquecermos (não, nunca queremos esquecer), dedos que se observam porque sabemos que é a última semana...
Pensa-se no que pensa aquela mente: não acredita em Deus, nota-se-lhe um certo medo, quando o invoca às conversas, mas há em tudo uma paz... Que perguntas se fará? Num corpo esgotado haverá ainda lugar à esperança? A que ponto?...
Por onde vagueia a alma de quem foi assassinado? Demora de facto nove meses a deixar o mundo, tantos como esteve a formar-se o corpo-embalagem que nos traz dentro?
A humana condição é não sabermos de quando nos soe a hora. Em curva, berma de estrada, em cama de escaras ou num beco, em plena rua, no metro, com nome e grande séquito em funeral ou sem nome recordado e sem flores na sepultura? Ninguém sabe quando e como.
Ninguém sabe.
Ninguém sabe...
Isso... é bom?
E se em nome desse deus só, "desconhecido", a humana condição não fosse impura, teria valido a pena...
Isto pensado, saiu a ver as aves. O sol já se punha. A noite trazia o frio. Silêncio dos milénios, isto que trazemos dentro e nos impele para as respostas. Por hoje, não pensar mais. Não pensar mais. Pensar dói. As aves são toda uma outra coisa. Voar para longe com elas.
Rir da felicidade suprema de, muito singelamente, não ter dores físicas...

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