6.7.08

Remembering...

« Zuído, a mulher-perplexidade com pátina »

Gostava de ler jornais com, pelo menos, uma semana de morte. Mais perplexidade lhe causariam as reflexões daquelas centenas de inúteis que, em insana fuga à passagem das horas mais não fazem do que comentar (e que mal, as mais das vezes!) o trabalho de outros. E ria, perplexa, quando se ia apercebendo de que o morto nº 1, 2, 3 ou 4 (respectivamente) dizia tal ou tal coisa das ideias políticas, dos filmes, dos livros, das exposições de A, B, C ou D (também aqui respectivamente). Apercebia-se, então, de que há muitas formas de perder tempo. Acrescentava mais essa característica humana no seu caderno predilecto: o dos óbitos. Recortava os mais imbecis e arquivava-os: também tu morrerás um dia. Afastava-se, mais sorrindo do que devagar, pensando em como a vida é um lugar estranho.
(3 Fev. o6)
II
Ao retirar a sopa aquecida do micro-ondas, teve um pensamento quase repulsivo - ela estava sempre a pensar em alguma coisa - quando se imaginou a fazer o mesmo gesto dali a 20, 30 anos: e se a mão lhe tremesse, então? Dramas como esse a que antigamente se chamava senilidade e que agora apareciam com nomes mais humanos como Alzheimer ou Parkinson... Se a mão nos treme, como movemos coisas frágeis com líquido dentro, lavamos os dentes sem magoarmos as gengivas, cortamos alimentos na cozinha, enfiamos uma agulha e cosemos um botão ou bainhas, vestimos roupas mais complicadas, contamos moedas para pagar, seguramos um guarda-chuva, pomos medicamento e aplicamos um penso rápido num ferimento feito pela faca que cortava os alimentos, como assinamos o nosso próprio nome? Sim, como se assina condignamente o nosso nome, aquilo que nos faz reconhecer como pessoa, o nome que nos chamou a nossa mãe? E se a doença avança, como saberemos que é esse o nosso nome? Onde ficará, então, nas encruzilhadas da nossa cidade, a casa que escolhemos ou nos calhou habitar? Quem seria ela, então?..., pensava enquanto comia a sopa e lia mais umas linhas de Proust.
Sossegada quanto ao facto de não ter de vir a apertar atacadores - porque não usava desse tipo de calçado - ela pensou se não seria melhor começar a ver relógios através de um espelho, caminhar de costas em casa, fazer tarefas de olhos fechados, lavar os dentes e usar o rato do computador com a mão esquerda - coisas que, aliás, fazia desde pequena - e passar a ler muito - como já fizera em pequena -, logo, logo que acabasse a sua investigação sobre o tempo que alguém tinha perdido... Pelo sim pelo não, decidiu também ter um filho. Um dia, ele não se sentiria usado, compreenderia muito bem o instinto de conservação da mãe: quem nos recorda com mais carinho do que um filho o nosso próprio nome?
« - Zuído, mãe. O teu nome é Zuído.»
Essa voz vinda do futuro sossegou-a e, suspirando, fechou os olhos para saborear a sopa e sentir-lhe o odor. Confortada, sorriu e pensou como era terrível estar-se sempre a pensar em alguma coisa. Imaginar era delicioso vício...
Imaginar é a cócega cerebral equivalente à descarga eléctrica do prazer do corpo. Ter ou não prazeres múltiplos é, como em tudo o que toca a qualidade de vida, uma questão cerebral. Deu graças a Deus por ser inteligente: as pessoas inteligentes vivem mais tempo, lera dias antes. Isto pensado, acabou a sopa com um sorriso que sabia a vegetais frescos. Engoliu um gole de água e riu de novo: como durante o prazer-maior, tinha os olhos fechados. Viveria mais. Para sentir mais.
(9 Fev. o6)
III
Ode à água

Estes hábitos diários como o do banho enchiam-lhe de alegria a casa. A roda-viva de quem procura coisas em gavetas rectangulares e gavetinhas quadradas, mais com um presto palpitante do que com a pressa de cumprir horários fazia-a, invariavelmente cantarolar. Depois, era todo o ritual do que se abre como pela primeira vez: a nova ordem que nasce da desordem. Retirar as vincas a tolhas lavadas, desdobrar para novo uso, a colocação suave e aparentemente desmazelada sobre um banco antes nu; um pijama que se escolhe - camisola que se tira pela cabeça, carcela aberta, numa fúria, ou casaco que se vai entreabrindo em noites de amor mais compassado?, a tremura de mãos que se alojam entre o tecido e a carne morna, as volutas de uma pele em requebros de escorregadia, pantanosa, movediça arena, a inebriante perdição de dedos entre cabelos ainda húmidos na raiz. Optar, optar que é uma pressa! Escolher as roupas mais pequenas, ou o que é mais quente e confortável e abraça os mais sensíveis lugares do corpo, ou o que seja preciso retirar dali a escassos minutos como prisão que se arremessa para longe, quando o turco envolvendo os cabelos ainda guarda a calidez que lhes trouxe a água e alguém mais apressado do que ela - não sabendo assim sensível a temperaturas a pele que recobre a nuca - quer colher um fruto que se tolhe até de aragens que a casa não tem. Os pés já nus ansiando a água quente, recurvados fora dos chinelos de tecido bordado, um quadro de Fragonard ao qual se pede quietude, para que as maçãs do rosto se façam mais rubras sob o olhar em malícias de vapor (ah, esse culpado!). O último arrepio, peças fora, quando o tecido macio descobre a pele que se eriça, as ânsias de água quente, a precipitação para lugares onde as gotas caiam, convidando à luxúria do calor inimitável. O alívio de um ahhh sustenido, um nicho ainda de ventre materno, um recurvar-se sobre si, clave de sol ou fá. O riso que brota de dentro da alma, o âmago rendendo-se à mornaceira do líquido. Um abraço inigualável.
Pensando que nada vivifica como a água, acontecia-lhe renascer, esquecer ou até resolver os maiores problemas sem lhe ter sido necessária a beatífica noite de sono: ondina, sentia-se klimtiana e refeita de pazes com o mundo quando deixava que sobre si corresse a quentura alada da água. Esse crime cometia: como Mélusine quando estava a sós, mergulhava na féerie que é estar-se fora do mundo. Para sempre, para sempre ter sido ab-so-lu-ta-men-te feliz quando a hora do banho lhe trazia memórias de lugares (de) onde não se regressa. Os sortilégio de viver em pleno ar; para sempre no éter um corpo ser vertical, quando tudo nele nasceu para redondos, cálidos, aquáticos movimentos ondulatórios. Mélusine, serpente alada; ela, peixe de fogo, uma miragem funâmbula por entre os vapores que se enovelam do líquido sagrado. Um banho, um duche podem ser cerimónias de iniciático recorte, cultos de paganismo: sonoridade, odores, papilas gustativas, sensações tácteis... olhos fechados. A alma sobe com a água evaporada e percorre todos os lugares por onde mais ninguém passe, como as vozes que nos Himalaias oram, desejos levados para longe, preces por entre os farrapos que o vento agita.
(10 Fev. 06)
IV

Lia O Mestre. Sentada, sem frio nem calor, pensava no que vira no seu café habitual: pais trintões que não sabem cuidar dos filhos, que os deixam entregues a toda a gente; que os deixam destruir o que os rodeia, que não sabem o que é educar. Bem vestidos, bom aspecto, mas um comportamento que, ao nível prático, se encontra ainda no lazareto. E isto com a morte? Algo a ver? Tudo! Ou se conhece a harmonia, ou já se morreu e alguém se esqueceu de nos mostrar a certidão de óbito. A harmonia é crónica, em algumas vidas. Nada se fez, na infância, para que nos tocasse, mas há uma aura que nos envolve os dias e ainda mais as noites. Se o seu oposto nos toca, logo lançamos fora os remos - de pouca largura para empurrar a torrente - e damos vazão à maré contrária à força de braços, mergulhando até aos ombros a pele, e, na frente do pequeno barco - mera casca de avelã - mantemos o olhar na linha do horizonte onde queremos chegar. Tal como na antevisão de um acidente, não focar o provável objecto com o qual se vai colidir, mas sim o espaço livre para evitar o choque. Assim se deve avançar: sem olhar as águas que, movimentando-se, nos turvam a vista em vórtice de perdição. Assim se deveriam educar crianças: harmonia em tudo.
Isto pensado, voltou a ler. Pouco tempo conseguiu após a reflexão. À página 32, dois focos infecciosos: duas evidentes expressões do português veracruciano que, invadindo tudo, ela abominava. Não era o seu português. Purista, custou-lhe ver que O Mago empregava, numa frase da 32, entre as 13ª e 15ª linhas, duas expressões perfeitamente evitáveis: «(...) os lares da terceira e quarta idades não queriam nem pensar (...) não mudariam nunca (...)». Então, mesmo sabendo que muito do português falado nos brasis era o dos seus antepassados - surgindo na actualidade expressões antigas das centúrias XVI e sucessivas - não conseguiu ou não quis evitar a repugnância... Até O Mago? Até ele se deixara subverter por esse falar tóxico?... Incrédula, olhou o vazio, boca entreaberta como para um lamento, livro poisado no colo, como se adormecida. Olhou-o num esgar de náusea, percebendo que estava desfeito mais um mito. Percebeu então, pelo sabor a fel que era cada pontapé na Língua Pátria - embora lhe acontecessem, também, falhas que não se perdoava, nunca esperara isso de um Mestre -: nunca viria a ler além da página 32... Alguém seria incumbido de contar-lhe, com pormenores, a estória de que se dá conta no livro. Ela, ela nunca mais o leria. Ficava assim mais um coberto do ferrete da vergonha. Deo gratias por nunca o ter comprado, antes o tendo trazido emprestado de um Templo (biblioteca). Valeu-lhe à consciência ter lido o "Memorial..." quando O Mago ainda era escorraçado pelo país dos imbecis crónicos. Ainda não era moda aclamar também esse como "mais um herói que calhou nascer neste solo e que havemos de glorificar só por esse acaso, nunca por ter verdadeiro talento e não ser lambe-botas profissional". Soube que admirava a intransigência a que também se chama coerência ou fidelidade a si e ao seu cérebro, milhões de anos-luz antes de agradar às massas hidrocéfalas. Admiraria O Mago até ao fim dos seus dias, como se admira qualquer autodidacta que tem repulsa da mediocridade do seu povo, mas pararia por ali, vegetando até que novo livro surgisse e a fizesse tropeçar de novo numa qualquer expressão de "português dos Brasis". Mas não ser coerente, isso não faria.
Nunca leria - além da página 32 - "As Intermitências da Morte". Nunca.
(19 Fev. 06)
V
Corpo oblíquo, lia um cartaz. Homem com uma taça de champanhe que o dava a beber a uma mulher que tinha um cão de regaço com diadema sobre a cabeça. Com a inclinação de cabeça forrest-gump'iano - que também já apreciara em alguns cães expressivos - manteve fixo o olhar e derramou à direita o pescoço. Decidira ver as personagens na horizontal. Os olhos percorreram, então, as pernas dos dois humanos. Toda a arquitectura dos corpos lhe enchia os dias. A ser parecida com os seus, seria excelente ilustradora (recordava até como reproduzira imagens a lápis de carvão, sendo muito fiel ao original), mas faltavam-lhe o traço, a mestria de quem redesenha o mundo a sépia. Por isso, optara por recolorir o quotidiano com palavras. Descrevia o movimento dos cheiros, tacteava os sons que lhe percutiam a pele, dizia ácidas ou cordatas as cores, via tão nitidamente o vento que a sua passagem lhe humedecia os olhos, abertos não à secura mas sim à comoção. Não suportava nem o sofrível nem as frivolidades.
Escrevia como se compõe, cada polpa de dedo pequenino que o seu amor mordera na longitude em tributo, um martelo doce sobre cada tecla, o alfabético piano que quisera afagar para sempre. Em dias bons, sentia tudo: era ver uma mulher de trinta anos e mais de meia década - andar ágil de bailado, rosto ameninado, testa ampla, o olhar redondo e olheirento de Proust, o mais adorável "ovo-de-Páscoa"! - deslizar os dedos por bancos de jardim de granito, mupis de paragens de autocarro, caixotes do lixo de metal, rugosidades de cascas de árvore, prender em argola junto ao solo a mão em volta de uma urze, um tojo, para percorrer os raminhos restolhantes rshch shch rshchchchtttttttt. Abrir num riso o rosto, testa recuada do prazer da cócega. Acontecia-lhe quase encostar o ouvido ao copo que enchia de água. Quem a visse, em certos dias, diria que estava na Graça de Deus. A culpa fora de Assunção, uma mulher minúscula já sepultada no talhão de uma irmandade sem nome à vista: vestia de cinzento, usava óculos com aros antigos, ensinou-lhe o seu credo: amar a todas as coisas ainda mais do que a si. As Palavras-Maiores eram, invariavelmente, estas:
Pai Nosso, que Estais no Céu,
Santificado seja o Vosso nome.
Venha a nós o Vosso reino.
Seja feita a Vossa vontade,
assim na Terra como no Céu.
O pão nosso de cada dia
Nos dai hoje.
Perdoai-nos as nossas ofensas,
assim como nós perdoamos
a quem nos tem ofendido.
Não nos deixeis cair em tentação.
Mas Livrai-nos do mal.
Disto gostava: seja feita a Vossa vontade.
Seja feita a Vossa vontade.
Seja feita a Vossa vontade.
(Se o meu amado leitor não entendeu esta música subtil das palavras, sussurre, fale em gutural voz blues, diga alto ou em cicio, diga ao ouvido de quem ame, diga ao seu filho, aceite. Aceite. Aceite o que não puder mudar. Olhos fechados até que as sombras azuis cubram tudo ao abrir das pálpebras, como olhar o mundo pela primeira vez, inalar, sentir o arrepio do terror de estar vivo.)
« - Seja feita a Vossa vontade» - murmurou ela, enquanto, pescoço tombado, observava a lonjura da paisagem por detrás do casal da publicidade no mupi da paragem de autocarro. Uma idosa que se aproximara viu-lhe nos dedos quase dentro do bolso o terço, mediu-lhe o olhar perdido, extático, sorriu, temerosa, deixando-a a sós, uma pergunta morrendo-lhe nos lábios: que importava a hora do autocarro? Alguém invocava Deus. Exactamente como ela quereria mais vezes, a velhinha - Assunção renascida? - afastou-se, deixando-a à chuva miudinha que principiava a cair. Deixou-a como ela pedia no momento: Senhor, dá-me o silêncio. Não me obrigues a ouvir-me, litania contra o mundo. Faz-me assim esta sombra, liberta-me da que sou. E contudo, seja feita a Tua vontade...
Sorriu à chuva e partiu, passo breve, a mão esquerda afagando o muro de granito à medida que se afastava. Como na infância, pulmões cheios de ar até à dor, satisfazer aos dedos a gula do toque em tudo o que está.
(22 fev. 06)
VI
No olho direito, à medida que teclava, a sua imaginação criava microfilmes. Na retina, o que nunca vira: rapazes pontapeando um corpo inanimado, as conversas, os planos, a constatação do ferrete horrendo de um crime, o arrastar dos restos de um ser humano para o poço onde ficaria, jazendo... Como fugir à sua imaginação, como esquecer o pesadelo que lhe ecoava no centro nevrálgico dos pensamentos? Os cheiros! Conseguia sentir os cheiros: as latas com restos de comida, o suor das roupas amontoadas no chão, o cheiro selvagem nos cobertores velhos, os excrementos, o cheiro do sangue seco, o cheiro das lágrimas? Como no cemitério, perante a sepultura da avó, todos os cheiros presentes, os da urina, o das chagas, o da água morna do banho, o dos medicamentos, o da comida que lhe dava na boca, passo a passo, o cheiro da gratidão?
Após muito ter pensado, constatara que era isto a condição humana. De alguma forma, todos passariam por lá: a não viverem a velhice, todos teriam de viver a de outros. Se não a da pessoa com quem fizeram votos de fidelidade, a dos pais, a de outros familiares idosos. Por isto se mede um humano. Pela capacidade de dádiva quando a doença ou a idade assomam ao corpo e tudo o que é vivido se concentra em cheiros, em líquidos xaroposos, em noites mal dormidas e povoadas do que o dia trouxe. Ambulâncias, rostos desconhecidos entrando em casa, de gente que transporta macas, gente que aplica curativos, que dá injecções, que recebe o dinheiro, que diz «as melhoras» mesmo sabendo da hipocrisia da frase. Outros há que nos tocam um pulso que é apertado: «Coragem, hein?». Teremos.
É isto a condição humana: fluidos, cheiros, pele, excrementos, medo, força, acreditar. Cabelos húmidos da almofada transpirada, unhas que é preciso cortar, antes que a morte venha e sequem como a todos, lágrimas que é preciso limpar, ternuras macias que é preciso ter na voz, na paciência para ouvir o que há de mais verdadeiro, histórias de antepassados, cabelos que se afagam, membros que se mudam de posição, para que outras chagas não surjam, camisas de noite que se rasgam ao alto, um corte ao longo das costas, rugas, pregas que se desfazem na cama de lençóis bem esticados, para que a pele não se macere, tentamos fotografar aquele rosto, para não o esquecermos (não, nunca queremos esquecer), dedos que se observam porque sabemos que é a última semana...
Pensa-se no que pensa aquela mente: não acredita em Deus, nota-se-lhe um certo medo, quando o invoca às conversas, mas há em tudo uma paz... Que perguntas se fará? Num corpo esgotado haverá ainda lugar à esperança? A que ponto?...
Por onde vagueia a alma de quem foi assassinado? Demora de facto nove meses a deixar o mundo, tantos como esteve a formar-se o corpo-embalagem que nos traz dentro?
A humana condição é não sabermos de quando nos soe a hora. Em curva, berma de estrada, em cama de escaras ou num beco, em plena rua, no metro, com nome e grande séquito em funeral ou sem nome recordado e sem flores na sepultura? Ninguém sabe quando e como.
Ninguém sabe.
Ninguém sabe...
Isso... é bom?
E se em nome desse deus só, "desconhecido", a humana condição não fosse impura, teria valido a pena...
Isto pensado, saiu a ver as aves. O sol já se punha. A noite trazia o frio. Silêncio dos milénios, isto que trazemos dentro e nos impele para as respostas. Por hoje, não pensar mais. Não pensar mais. Pensar dói. As aves são toda uma outra coisa. Voar para longe com elas.
Rir da felicidade suprema de, muito singelamente, não ter dores físicas...
(26 Fev. 06)
VII
Relera I, II, III, IV, V, VI...
Revia-se ainda em tudo isso que lhe perpassava sob os olhos.
A boca sabendo às gotas de chuva que, manhã cedo, haviam decidido cair sobre os telhados de Azimutes. Sem pressas, na doçura que a cama traz ainda ao corpo recém-morno, deslizou até à persiana mais ampla. Graças aos Céus, o sol escondera-se: precisava de manhãs um tudo-nada baças, foscas, recordando a cinza que tudo é. A clareza dos dias ditos "lavados" enorpecia-lhe músculos, toldava visão, fazia enrugar a testa pela clareza das pupilas. Gostava mais assim: dia mais em cinzas do que em sóis.
A camisa de noite, branca, agradecia não ser reflexo do seu corpo à transparência. Se ali não lhe estava o amor, para quê estes cabelos soltos, a pele tão branda, os olhos tão deliciosamente inchados da preguiça, o hálito a fresco que pede beijos? Não seria, de todo, um desperdício, porque na casa há sempre um ou outro espelho que observa passagens fugidias: os dedos de um pé descalço, um ponta de caracóis castanho-arruivados, um vulto de Três Graças numa só, um braço em meneios de dança se a música a isso o move, um choro bonito de saudades.
Os prazeres solitários sendo puro desperdício, aprendera com as ideias da gnose a sublimar como Mahatma, mas ai da soberba! A sua soberba de saber-se não-exposta a cupidezes de gente estúpida e rápida nas acepções, a salvo de pensamentos broncos: não andava pelo mundo pelo prazer da cobiça. Criança particularmente bela, sempre estivera sob mira, odiara homens morbosos e desde cedo aprendera a furtar-se a prazeres baseados em escorrências do asco da posse pura. Poder. Harmonia. Tudo em si era harmonia. Amores poucos mas perfeitos; amor pouco, mas do bom. Preservar-se. Preservar-se de mundo.
«A minha casa é o meu reino! Nela, não entrarão desejos de corpos ausentes nem pensamentos de vida a prazo de minutos. Quem vier, virá pela mão, em passo decidido mas sem pressas, que amor não é coisa que se faça contra o tempo».
A cada um o seu percurso. A sorte da delícia tântrica a quem souber preservar-se de excessos. Com Mahatma aprendera a não ter olhos cobiçosos e nunca lhe acontecera desejar um corpo de alguém que não reconhecesse pela voz, pelo toque, pelo veludo dos olhos nas horas certas. O mundo é para quem o queira.
Aqui, faz-se do tempo um aliado. Por isso, os pássaros, por isso, as plantas, por isso a casa vazia, um reino de um só, um terreno de paz, íntegro, neutral, asséptico, fluido e morno como areia limpa da manhã na praia mais vazia. Energia iguala dons. Dons requerem o vazio de vozes. A melhor amiga de quem cria é esta longa noite de silêncios que trará o amor pelo nome. O que queira, como queira, com quem queira, quando o queira. Se o quiser, de facto. Tudo o mais lhe passava sobre a pele, meras ocorrências. Olhos baixos, ausências, lugares sem fumo nem agressões, harmonia pura em cada passo, cada movimento parte da imensa coreografia.
Num relance, viu a movimentação das nuvens: choveria! Um dia perfeito, portanto!
Isto feito, deteve-se a observar os pardais que debicavam a terra das suas plantas. Recordava palavras de outros, de uma colega, da mãe, do vendedor de flores «Um rosto realmente fora do comum....» Impossível, se a cada nova pessoa conhecida era tratada como se da família! Cada novo rosto via no seu sinais de outras vidas em comum, cada nova fala lhe dizia de a ter visto antes algures, cada nova pessoa uma nova apreensão por pensá-la esposa, irmã, companheira, amante de alguém conhecido. E a confusão que isso causara à sua infância... A ambiguidade de ser Rafaello, Brando e agora, descobria também, Senna nos traços doces, muitos, muitos homens! Ter no rosto mais traços de ambiguidade do que de fêmea... Em bebé, usara brincos desde cedo, porque a diziam... "um belíssimo menino"! Ilusórios, os matizes de um rosto com o travo da divina ironia. Deus tem sentido de humor.
Ria da "selecção natural" que a levava a (auto)excluir-se incessantemente. Seleccionara-se para experiências com a "antipatia", a chamada "solidão", a ausência da chamada "vida social" por uns tempos. O resultado era excelente, com efeitos óbvios nas suas gavetas: produzia mais textos do que Proust! Como ele, considerava delicioso o que para muitos seres plenos de incompletude era pura perda de tempo. Um sensitivo ri muito de si para consigo daquilo que as maiorias pensam ser uma espécie de vazio do que quer que seja. A delícia é essa, precisamente! Nisto pensava e pensava que não pensa(va) nada mal.
Inspiração? Sair para qualquer lugar público e... abrir os olhos! Sem cigarretas na mão, canetas-de-estilo, afectações intelectualóides típicas de inseguros sem ideias próprias, figuras de vaudeville ou amigos influentes no sentido mais asqueroso que o termo pudesse ter. O supremo sentido de humor seria ver um relógio correr contra si, contrariando o tempo. Isso ia fazendo, ciente dos riscos. O que é a vida sem margens? É aí, nas margens dos papéis principais, no silêncio da casa e no bulício de certos lugares públicos que impera a chave. Que a visão seja dada a quem, como Salomão, isto apenas pediu na vida, a par com o silêncio: Sabedoria!
Este blog é um diário-ficcional, não no todo, mas em parte, sendo que o que aqui esteja contido ou se contenha de cada uma das partes é da minha inteira responsabilidade. Penso viver longamente. Terei tempo de pagar, portanto.
"Eu, eu, eu", dizes baixo, amor... E não é por estes olhos que o mundo entra? De que outro bunker deveria observar, se não este que eu aparento ser, o corpo mera embalagem da alma que por mim se exprime? Seja como for, risível, a actual moda da falta de inspiração, não te parece, amor? Não, não sou uma teaser: sou hedonista no intelecto.
Vem cá... Traz-me um dos teus beijos vagarosos, sim?...
Imprimatur.
(4 Abril 06)
VIII
Música em fundo; um pulso já aberto. A do post anterior; o esquerdo.
O
passado proclama o seu lugar no chumbo dos dias. Como conceber uma vida tão absolutamente inoxidável que não se tenha proporcionado esse sortilégio a que chamam "sentimento do A grande"? A perplexidade aninha-se nos dias como uma palma de mão glabra recebe a madeira recurvada do guarda-chuva a que chamam pega. Toma-lhe a forma, amacia-se dentro, como Ada fez na mão do falso maori: antes ou depois do sexo, numa das mais sensuais cenas que já viu o cinema, encaixa na mão dele em repouso a sua, pequena, aquela experimentação em ânsias de expressão de todos os surdos-mudos. Assim a minha mão percorre a maciez da extensão do guarda-chuva como ele se alaga pelo espaço cálido da palma. Esta palma da mão que te percorreu o peito ensinando à minha boca o caminho. A mesma que se insinuou no teu queixo até que os dedos te adentrassem os lábios. Tu já sabias tudo, mas eu ensinava-te o que te faltara em todas essas mulheres. Apaguei-as, com a minha inocência?
« - Ensina-me...», dizia-te de olhos fechados, num sussurro. Suplicar aplaca.
« - Tu já sabes tudo. Toda a gente sabe. Nada sei que não saiba o teu corpo. Aprendo.»
A testa encostada aos teus lábios insistia nesse calor, deslizava, como a de quem chora contra as mãos. Choravam os olhos. A alegria era chose toute neuve, à medida que as delícias trocadas por telefone - a despeito do meu rosto corado - se tornavam agora vivas como ferro em brasa. A cócega que sempre me começa pelos pulsos que imperiosamente foram mordidos na longitude, o perigosíssimo declive da curva do braço, o arrepio que sobe o interior até ao nicho das axilas, o nariz em escalada pelos ombros, o triângulo invertido sob a nuca onde mora a perdição, o meu corpo que pedia o calor do teu sopro na pele vibrátil de asas do nariz, dos seios excedendo-se, saindo de si mesmos, orelhas que, derretidas das invejas de todo o resto, viviam a glória da tua boca nos mais insanos murmúrios. Perder-se. Não para sempre, mas perder-se o corpo dos hiatos de tempo. O espírito que, liberto, paira acima de nós, no teu chão coberto dos cabelos com os quais te velo o rosto e te prendo em canto de sereia. Sob esse manto, os olhos perfuram-se procurando o sono do esquecimento.
Não me perguntava então - pergunto-me agora - como sabe o corpo os caminhos tortuosos da delícia. A dor física da delícia. A tortura que diz "pára", a tortura que diz "sim". De novo, o pulso, precisar que me tomasses ambos os pulsos para desenrolar-me as mãos dos teus cabelos em ondas: beijares-me as palmas como um faminto se alimenta, um sequioso aplaca sedes, um moribundo pede vida. A pressa que se volve a calma dos comatosos. A boca selada pela tua, a minha respiração a custo, subo à tona do mergulho, pulmões que estalam, corpo sacudido pelo pasmo da revelação da trégua. Os teus dentes que me marcam, em percursos de noites inteiras nuca, ombros, boca e pulso.
É por isso, amor, que agora está aberto. Foi justamente nas tuas marcas - que eternizo só tuas - que sigo o trilho da noite da minha vida. Aquela pela qual muitos matam, a que a tantos dá anseios, a prova derradeira da irónica existência de Deus. Este pulso de onde o mesmo fluido que viu Petrónio agora corre para o solo é, neste momento e para sempre, oque marcaste a meu pedido.
Tinha de ser, you see?
Como suporta uma mulher da beleza que a acusam viver sem o que tu és? O teu sofrimento ensina-me quem sou. A tua voz de sono diz-me que fui substituída. Esperas que seja eu a dizer de novo "quero-te"? Esperas que viva sem o deserto da tua voz? Que esqueça a tua carta de alforria? Não a quero! E não é a ti que quero: é à mulher que me ensinaste a descobrir e me desabita agora que não me aqueces o nome com o cálido da voz que te fez meu dono.
A razão abandona-me numa tontura de delírio. A vida sai de mim. Repito o teu nome como nessas noites. As quatro sílabas do teu nome restituíram-me nessas horas só nossas a que sou e procurava. Murmura. Sussurra. Cicia agora o meu nome. Sou, enfim, tua até ao fim dos tempos.
Que a pátina do tempo escorra da que eu fui a perplexidade das noites. Todas as que desceram à terra antes das nossas noites.
(30 Abril 06)
(Continua...)

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