10.2.06

Zuído, a mulher-perplexidade com pátina - III

Ode à água
Estes hábitos diários como o do banho enchiam-lhe de alegria a casa. A roda-viva de quem procura coisas em gavetas rectangulares e gavetinhas quadradas, mais com um presto palpitante do que com a pressa de cumprir horários fazia-a, invariavelmente cantarolar. Depois, era todo o ritual do que se abre como pela primeira vez: a nova ordem que nasce da desordem. Retirar as vincas a tolhas lavadas, desdobrar para novo uso, a colocação suave e aparentemente desmazelada sobre um banco antes nu; um pijama que se escolhe - camisola que se tira pela cabeça, carcela aberta, numa fúria, ou casaco que se vai entreabrindo em noites de amor mais compassado?, a tremura de mãos que se alojam entre o tecido e a carne morna, as volutas de uma pele em requebros de escorregadia, pantanosa, movediça arena, a inebriante perdição de dedos entre cabelos ainda húmidos na raiz. Optar, optar que é uma pressa! Escolher as roupas mais pequenas, ou o que é mais quente e confortável e abraça os mais sensíveis lugares do corpo, ou o que seja preciso retirar dali a escassos minutos como prisão que se arremessa para longe, quando o turco envolvendo os cabelos ainda guarda a calidez que lhes trouxe a água e alguém mais apressado do que ela - não sabendo assim sensível a temperaturas a pele que recobre a nuca - quer colher um fruto que se tolhe até de aragens que a casa não tem. Os pés já nus ansiando a água quente, recurvados fora dos chinelos de tecido bordado, um quadro de Fragonard ao qual se pede quietude, para que as maçãs do rosto se façam mais rubras sob o olhar em malícias de vapor (ah, esse culpado!). O último arrepio, peças fora, quando o tecido macio descobre a pele que se eriça, as ânsias de água quente, a precipitação para lugares onde as gotas caiam, convidando à luxúria do calor inimitável. O alívio de um ahhh sustenido, um nicho ainda de ventre materno, um recurvar-se sobre si, clave de sol ou fá. O riso que brota de dentro da alma, o âmago rendendo-se à mornaceira do líquido. Um abraço inigualável.
Pensando que nada vivifica como a água, acontecia-lhe renascer, esquecer ou até resolver os maiores problemas sem lhe ter sido necessária a beatífica noite de sono: ondina, sentia-se klimtiana e refeita de pazes com o mundo quando deixava que sobre si corresse a quentura alada da água. Esse crime cometia: como Mélusine quando estava a sós, mergulhava na féerie que é estar-se fora do mundo. Para sempre, para sempre ter sido ab-so-lu-ta-men-te feliz quando a hora do banho lhe trazia memórias de lugares (de) onde não se regressa. Os sortilégio de viver em pleno ar; para sempre no éter um corpo ser vertical, quando tudo nele nasceu para redondos, cálidos, aquáticos movimentos ondulatórios. Mélusine, serpente alada; ela, peixe de fogo, uma miragem funâmbula por entre os vapores que se enovelam do líquido sagrado. Um banho, um duche podem ser cerimónias de iniciático recorte, cultos de paganismo: sonoridade, odores, papilas gustativas, sensações tácteis... olhos fechados. A alma sobe com a água evaporada e percorre todos os lugares por onde mais ninguém passe, como as vozes que nos Himalaias oram, desejos levados para longe, preces por entre os farrapos que o vento agita.

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