9.2.06

Zuído, a mulher-perplexidade com pátina - II

Ao retirar a sopa aquecida do micro-ondas, teve um pensamento quase repulsivo - ela estava sempre a pensar em alguma coisa - quando se imaginou a fazer o mesmo gesto dali a 20, 30 anos: e se a mão lhe tremesse, então? Dramas como esse a que antigamente se chamava senilidade e que agora apareciam com nomes mais humanos como Alzheimer ou Parkinson... Se a mão nos treme, como movemos coisas frágeis com líquido dentro, lavamos os dentes sem magoarmos as gengivas, cortamos alimentos na cozinha, enfiamos uma agulha e cosemos um botão ou bainhas, vestimos roupas mais complicadas, contamos moedas para pagar, seguramos um guarda-chuva, pomos medicamento e aplicamos um penso rápido num ferimento feito pela faca que cortava os alimentos, como assinamos o nosso próprio nome? Sim, como se assina condignamente o nosso nome, aquilo que nos faz reconhecer como pessoa, o nome que nos chamou a nossa mãe? E se a doença avança, como saberemos que é esse o nosso nome? Onde ficará, então, nas encruzilhadas da nossa cidade, a casa que escolhemos ou nos calhou habitar? Quem seria ela, então?..., pensava enquanto comia a sopa e lia mais umas linhas de Proust.
Sossegada quanto ao facto de não ter de vir a apertar atacadores - porque não usava desse tipo de calçado - ela pensou se não seria melhor começar a ver relógios através de um espelho, caminhar de costas em casa, fazer tarefas de olhos fechados, lavar os dentes e usar o rato do computador com a mão esquerda - coisas que, aliás, fazia desde pequena - e passar a ler muito - como já fizera em pequena -, logo, logo que acabasse a sua investigação sobre o tempo que alguém tinha perdido... Pelo sim pelo não, decidiu também ter um filho. Um dia, ele não se sentiria usado, compreenderia muito bem o instinto de conservação da mãe: quem nos recorda com mais carinho do que um filho o nosso próprio nome?
« - Zuído, mãe. O teu nome é Zuído.»
Essa voz vinda do futuro sossegou-a e, suspirando, fechou os olhos para saborear a sopa e sentir-lhe o odor. Confortada, sorriu e pensou como era terrível estar-se sempre a pensar em alguma coisa. Imaginar era delicioso vício...
Imaginar é a cócega cerebral equivalente à descarga eléctrica do prazer do corpo. Ter ou não prazeres múltiplos é, como em tudo o que toca a qualidade de vida, uma questão cerebral. Deu graças a Deus por ser inteligente: as pessoas inteligentes vivem mais tempo, lera dias antes. Isto pensado, acabou a sopa com um sorriso que sabia a vegetais frescos. Engoliu um gole de água e riu de novo: como durante o prazer-maior, tinha os olhos fechados. Viveria mais. Para sentir mais.

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