10.2.06

De contrastes

Por mais que se queira linear uma vida, por mais serenos que sejam os seus traços, o que sobrará fica-se pelos momentos-charneira: aqueles que mais nos marcam. Assim se explica que num mesmo dia se componha jarra de flores em homenagem a alguém que já não está - se percam os nossos passos num cemitério - e se passe no hospital - onde os nossos passos se encontram de novo - para, pela primeira vez, entrever o rosto pequenino de um luminoso ser acabado de entrar no mundo. A isto se resume a história de uma família: aos picos de emoção. De toda a serenidade que se interpôs, ninguém terá memória, um dia. Quem contará todos os amanheceres, os fins de tarde e as noites em que, sóbrios, nos sentámos para dar ao tempo conhecimento de que fazemos parte? Do linear, daquilo que é, afinal, "viver" não constam os álbuns, os pergaminhos, as filmagens. Será sempre da morte - porque ela é só uma - e dos nascimentos que a memória se socorrerá, um dia. Até que mais nada sobre. Não passaremos, então, de velhas fotografias num qualquer sotão. Pó. Nada mais do que gloriosa desordem nos códigos e na ordem. Aí, não há lugar a simetrias. Creio que é quando somos mais planos junto ao solo que realmente nos subjugamos à suprema humildade: despojados de sociedade, ser parte unívoca de tudo o que existe de mais natural. Para recordá-lo, não é incomum que me deite no relvado do jardim público, quando o mundo dorme e, silente, apenas uma velha coruja me tem por companhia. Renasço e sei que a morte poderia chegar ao de leve: estaria sempre pronta para segui-la.
O contraste do nascimento e da morte é, não contraditoriamente, a perfeita simetria, talvez porque do Outro Lado, qual imagem reflectida num espelho, sei que a desintegração mais não é do que o início da existência numa outra dimensão. A clarividência dos dias e a contemplação das noites não chegam, numa vida, para a magia de tal deslumbramento. Nasce-se como se morre: sujo, só e tremendo. Para minimizar o peso esmagador de estar-se vivo, muitos chamam frias a essas horas determinantes. E não é assim: trata-se de terror no seu mais puro estado. O temível fascínio de, finalmente, chegar à matriz de tudo.

Sem comentários: