4.4.06

Zuído, a mulher-perplexidade com pátina VII

Relera I, II, III, IV, V, VI...
Revia-se ainda em tudo isso que lhe perpassava sob os olhos.
A boca sabendo às gotas de chuva que, manhã cedo, haviam decidido cair sobre os telhados de Azimutes. Sem pressas, na doçura que a cama traz ainda ao corpo recém-morno, deslizou até à persiana mais ampla. Graças aos Céus, o sol escondera-se: precisava de manhãs um tudo-nada baças, foscas, recordando a cinza que tudo é. A clareza dos dias ditos "lavados" enorpecia-lhe músculos, toldava visão, fazia enrugar a testa pela clareza das pupilas. Gostava mais assim: dia mais em cinzas do que em sóis.
A camisa de noite, branca, agradecia não ser reflexo do seu corpo à transparência. Se ali não lhe estava o amor, para quê estes cabelos soltos, a pele tão branda, os olhos tão deliciosamente inchados da preguiça, o hálito a fresco que pede beijos? Não seria, de todo, um desperdício, porque na casa há sempre um ou outro espelho que observa passagens fugidias: os dedos de um pé descalço, um ponta de caracóis castanho-arruivados, um vulto de Três Graças numa só, um braço em meneios de dança se a música a isso o move, um choro bonito de saudades.
Os prazeres solitários sendo puro desperdício, aprendera com as ideias da gnose a sublimar como Mahatma, mas ai da soberba! A sua soberba de saber-se não-exposta a cupidezes de gente estúpida e rápida nas acepções, a salvo de pensamentos broncos: não andava pelo mundo pelo prazer da cobiça. Criança particularmente bela, sempre estivera sob mira, odiara homens morbosos e desde cedo aprendera a furtar-se a prazeres baseados em escorrências do asco da posse pura. Poder. Harmonia. Tudo em si era harmonia. Amores poucos mas perfeitos; amor pouco, mas do bom. Preservar-se. Preservar-se de mundo.
«A minha casa é o meu reino! Nela, não entrarão desejos de corpos ausentes nem pensamentos de vida a prazo de minutos. Quem vier, virá pela mão, em passo decidido mas sem pressas, que amor não é coisa que se faça contra o tempo».
A cada um o seu percurso. A sorte da delícia tântrica a quem souber preservar-se de excessos. Com Mahatma aprendera a não ter olhos cobiçosos e nunca lhe acontecera desejar um corpo de alguém que não reconhecesse pela voz, pelo toque, pelo veludo dos olhos nas horas certas. O mundo é para quem o queira.
Aqui, faz-se do tempo um aliado. Por isso, os pássaros, por isso, as plantas, por isso a casa vazia, um reino de um só, um terreno de paz, íntegro, neutral, asséptico, fluido e morno como areia limpa da manhã na praia mais vazia. Energia iguala dons. Dons requerem o vazio de vozes. A melhor amiga de quem cria é esta longa noite de silêncios que trará o amor pelo nome. O que queira, como queira, com quem queira, quando o queira. Se o quiser, de facto. Tudo o mais lhe passava sobre a pele, meras ocorrências. Olhos baixos, ausências, lugares sem fumo nem agressões, harmonia pura em cada passo, cada movimento parte da imensa coreografia.
Num relance, viu a movimentação das nuvens: choveria! Um dia perfeito, portanto!
Isto feito, deteve-se a observar os pardais que debicavam a terra das suas plantas. Recordava palavras de outros, de uma colega, da mãe, do vendedor de flores «Um rosto realmente fora do comum....» Impossível, se a cada nova pessoa conhecida era tratada como se da família! Cada novo rosto via no seu sinais de outras vidas em comum, cada nova fala lhe dizia de a ter visto antes algures, cada nova pessoa uma nova apreensão por pensá-la esposa, irmã, companheira, amante de alguém conhecido. E a confusão que isso causara à sua infância... A ambiguidade de ser Rafaello, Brando e agora, descobria também, Senna nos traços doces, muitos, muitos homens! Ter no rosto mais traços de ambiguidade do que de fêmea... Em bebé, usara brincos desde cedo, porque a diziam... "um belíssimo menino"! Ilusórios, os matizes de um rosto com o travo da divina ironia. Deus tem sentido de humor.
Ria da "selecção natural" que a levava a (auto)excluir-se incessantemente. Seleccionara-se para experiências com a "antipatia", a chamada "solidão", a ausência da chamada "vida social" por uns tempos. O resultado era excelente, com efeitos óbvios nas suas gavetas: produzia mais textos do que Proust! Como ele, considerava delicioso o que para muitos seres plenos de incompletude era pura perda de tempo. Um sensitivo ri muito de si para consigo daquilo que as maiorias pensam ser uma espécie de vazio do que quer que seja. A delícia é essa, precisamente! Nisto pensava e pensava que não pensa(va) nada mal.
Inspiração? Sair para qualquer lugar público e... abrir os olhos! Sem cigarretas na mão, canetas-de-estilo, afectações intelectualóides típicas de inseguros sem ideias próprias, figuras de vaudeville ou amigos influentes no sentido mais asqueroso que o termo pudesse ter. O supremo sentido de humor seria ver um relógio correr contra si, contrariando o tempo. Isso ia fazendo, ciente dos riscos. O que é a vida sem margens? É aí, nas margens dos papéis principais, no silêncio da casa e no bulício de certos lugares públicos que impera a chave. Que a visão seja dada a quem, como Salomão, isto apenas pediu na vida, a par com o silêncio: Sabedoria!
Este blog é um diário-ficcional, não no todo, mas em parte, sendo que o que aqui esteja contido ou se contenha de cada uma das partes é da minha inteira responsabilidade. Penso viver longamente. Terei tempo de pagar, portanto.
"Eu, eu, eu", dizes baixo, amor... E não é por estes olhos que o mundo entra? De que outro bunker deveria observar, se não este que eu aparento ser, o corpo mera embalagem da alma que por mim se exprime? Seja como for, risível, a actual moda da falta de inspiração, não te parece, amor? Não, não sou uma teaser: sou hedonista no intelecto.
Vem cá... Traz-me um dos teus beijos vagarosos, sim?...
Imprimatur.

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