19.2.06

Zuído, a mulher-perplexidade com pátina - IV

Lia O Mestre. Sentada, sem frio nem calor, pensava no que vira no seu café habitual: pais trintões que não sabem cuidar dos filhos, que os deixam entregues a toda a gente; que os deixam destruir o que os rodeia, que não sabem o que é educar. Bem vestidos, bom aspecto, mas um comportamento que, ao nível prático, se encontra ainda no lazareto. E isto com a morte? Algo a ver? Tudo! Ou se conhece a harmonia, ou já se morreu e alguém se esqueceu de nos mostrar a certidão de óbito. A harmonia é crónica, em algumas vidas. Nada se fez, na infância, para que nos tocasse, mas há uma aura que nos envolve os dias e ainda mais as noites. Se o seu oposto nos toca, logo lançamos fora os remos - de pouca largura para empurrar a torrente - e damos vazão à maré contrária à força de braços, mergulhando até aos ombros a pele, e, na frente do pequeno barco - mera casca de avelã - mantemos o olhar na linha do horizonte onde queremos chegar. Tal como na antevisão de um acidente, não focar o provável objecto com o qual se vai colidir, mas sim o espaço livre para evitar o choque. Assim se deve avançar: sem olhar as águas que, movimentando-se, nos turvam a vista em vórtice de perdição. Assim se deveriam educar crianças: harmonia em tudo.
Isto pensado, voltou a ler. Pouco tempo conseguiu após a reflexão. À página 32, dois focos infecciosos: duas evidentes expressões do português veracruciano que, invadindo tudo, ela abominava. Não era o seu português. Purista, custou-lhe ver que O Mago empregava, numa frase da 32, entre as 13ª e 15ª linhas, duas expressões perfeitamente evitáveis: «(...) os lares da terceira e quarta idades não queriam nem pensar (...) não mudariam nunca (...)». Então, mesmo sabendo que muito do português falado nos brasis era o dos seus antepassados - surgindo na actualidade expressões antigas das centúrias XVI e sucessivas - não conseguiu ou não quis evitar a repugnância... Até O Mago? Até ele se deixara subverter por esse falar tóxico?... Incrédula, olhou o vazio, boca entreaberta como para um lamento, livro poisado no colo, como se adormecida. Olhou-o num esgar de náusea, percebendo que estava desfeito mais um mito. Percebeu então, pelo sabor a fel que era cada pontapé na Língua Pátria - embora lhe acontecessem, também, falhas que não se perdoava, nunca esperara isso de um Mestre -: nunca viria a ler além da página 32... Alguém seria incumbido de contar-lhe, com pormenores, a estória de que se dá conta no livro. Ela, ela nunca mais o leria. Ficava assim mais um coberto do ferrete da vergonha. Deo gratias por nunca o ter comprado, antes o tendo trazido emprestado de um Templo (biblioteca). Valeu-lhe à consciência ter lido o "Memorial..." quando O Mago ainda era escorraçado pelo país dos imbecis crónicos. Ainda não era moda aclamar também esse como "mais um herói que calhou nascer neste solo e que havemos de glorificar só por esse acaso, nunca por ter verdadeiro talento e não ser lambe-botas profissional". Soube que admirava a intransigência a que também se chama coerência ou fidelidade a si e ao seu cérebro, milhões de anos-luz antes de agradar às massas hidrocéfalas. Admiraria O Mago até ao fim dos seus dias, como se admira qualquer autodidacta que tem repulsa da mediocridade do seu povo, mas pararia por ali, vegetando até que novo livro surgisse e a fizesse tropeçar de novo numa qualquer expressão de "português dos Brasis". Mas não ser coerente, isso não faria.
Nunca leria - além da página 32 - "As Intermitências da Morte". Nunca.

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