3.12.06

Senectute

Comprei-lhe as flores que me pediu. Ela sabe que pode contar comigo: não há lectrice como esta, uma que faz as compras e cuida como se fosse veleira de profissão. De resto, par onde caminha esta mulher voluptuosa dada aos sons das palavras? Também ela sabe que lhe tombam cabelos, seios, olhos e demais atractivos. Atreita ao centro da terra, despenha-se na modorra dos que tudo aceitam, mãos abertas em ofertório para que lhes sejam retirados, sem pena, os talentos que tenha ou não feito render. Antever a morte a cada dia faz-nos mais sóbrios e simultaneamente ténues, como folhas em outonal caducidade. É desse secreto recanto de lassitudes que se tecem estes dias que ainda conto. Espero morrer quando menos esperar. Amanhã, fingindo que nada disto sei, corto os mais belos cabelos que já vi: os meus. Quem me ama, chorará. Também isso faz parte: aceitar. Aceitar é tomar a vida às mãos ambas, não lutar contra ela. Que os pés de ignaros pisem esta sagrada amálgama de queratina. Assim morro eu. Dores por perder o que, não tendo nervos, desde a infância me traz lágrimas. Seja. Que o que não me mate de uma vez só me aproxime de Tara. Talvez um destes dias corte mais do que cabelos. Para perceber como é estar perto do Outro Lado. Cumpro-me em dias pares. Dos ímpares, sobra-me o sabor a pão com água no linho que cobre a mesa. Escuto a noite, nesta espera...
...
[Guardar uma idosa com poderes ditos (ainda!) paranormais enquista-me o acto criativo. Ela fala sem destino, assusta-se e a mim de tantos apelos. Espero o seu sono repleto de palavras, para aprender. Também ela é zuído. Também ela é perplexidade. Também ela a pátina do tempo nas figuras tutelares das sepulturas. Com ela, sou mais. Sem ela, esta tendência para destruir a beleza que me foi dada, escrevendo até que me suba o sangue aos olhos de clarividente mulher-aranha: Manitu fala através dela e, por ela, através de mim. Que a paz a sustenha. E a mim, com ela. Ternura plena no meu ventre de avó sem ter sido mãe. Ela é eu daqui a muitos, muitos dias. Espero pelas nuvens do futuro. Silente e descalça. Espero comigo.]

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