30.4.06

Zuído, a mulher-perplexidade com pátina VIII



Música em fundo; um pulso já aberto.
A do post anterior; o esquerdo.


O passado proclama o seu lugar no chumbo dos dias. Como conceber uma vida tão absolutamente inoxidável que não se tenha proporcionado esse sortilégio a que chamam "sentimento do A grande"? A perplexidade aninha-se nos dias como uma palma de mão glabra recebe a madeira recurvada do guarda-chuva a que chamam pega. Toma-lhe a forma, amacia-se dentro, como Ada fez na mão do falso maori: antes ou depois do sexo, numa das mais sensuais cenas que já viu o cinema, encaixa na mão dele em repouso a sua, pequena, aquela experimentação em ânsias de expressão de todos os surdos-mudos. Assim a minha mão percorre a maciez da extensão do guarda-chuva como ele se alaga pelo espaço cálido da palma. Esta palma da mão que te percorreu o peito ensinando à minha boca o caminho. A mesma que se insinuou no teu queixo até que os dedos te adentrassem os lábios. Tu já sabias tudo, mas eu ensinava-te o que te faltara em todas essas mulheres. Apaguei-as, com a minha inocência?
« - Ensina-me...», dizia-te de olhos fechados, num sussurro. Suplicar aplaca.
« - Tu já sabes tudo. Toda a gente sabe. Nada sei que não saiba o teu corpo. Aprendo.»
A testa encostada aos teus lábios insistia nesse calor, deslizava, como a de quem chora contra as mãos. Choravam os olhos. A alegria era chose toute neuve, à medida que as delícias trocadas por telefone - a despeito do meu rosto corado - se tornavam agora vivas como ferro em brasa. A cócega que sempre me começa pelos pulsos que imperiosamente foram mordidos na longitude, o perigosíssimo declive da curva do braço, o arrepio que sobe o interior até ao nicho das axilas, o nariz em escalada pelos ombros, o triângulo invertido sob a nuca onde mora a perdição, o meu corpo que pedia o calor do teu sopro na pele vibrátil de asas do nariz, dos seios excedendo-se, saindo de si mesmos, orelhas que, derretidas das invejas de todo o resto, viviam a glória da tua boca nos mais insanos murmúrios. Perder-se. Não para sempre, mas perder-se o corpo dos hiatos de tempo. O espírito que, liberto, paira acima de nós, no teu chão coberto dos cabelos com os quais te velo o rosto e te prendo em canto de sereia. Sob esse manto, os olhos perfuram-se procurando o sono do esquecimento.
Não me perguntava então - pergunto-me agora - como sabe o corpo os caminhos tortuosos da delícia. A dor física da delícia. A tortura que diz "pára", a tortura que diz "sim". De novo, o pulso, precisar que me tomasses ambos os pulsos para desenrolar-me as mãos dos teus cabelos em ondas: beijares-me as palmas como um faminto se alimenta, um sequioso aplaca sedes, um moribundo pede vida. A pressa que se volve a calma dos comatosos. A boca selada pela tua, a minha respiração a custo, subo à tona do mergulho, pulmões que estalam, corpo sacudido pelo pasmo da revelação da trégua. Os teus dentes que me marcam, em percursos de noites inteiras nuca, ombros, boca e pulso.
É por isso, amor, que agora está aberto. Foi justamente nas tuas marcas - que eternizo só tuas - que sigo o trilho da noite da minha vida. Aquela pela qual muitos matam, a que a tantos dá anseios, a prova derradeira da irónica existência de Deus. Este pulso de onde o mesmo fluido que viu Petrónio agora corre para o solo é, neste momento e para sempre, oque marcaste a meu pedido.
Tinha de ser, you see?
Como suporta uma mulher da beleza que a acusam viver sem o que tu és? O teu sofrimento ensina-me quem sou. A tua voz de sono diz-me que fui substituída. Esperas que seja eu a dizer de novo "quero-te"? Esperas que viva sem o deserto da tua voz? Que esqueça a tua carta de alforria? Não a quero! E não é a ti que quero: é à mulher que me ensinaste a descobrir e me desabita agora que não me aqueces o nome com o cálido da voz que te fez meu dono.
A razão abandona-me numa tontura de delírio. A vida sai de mim. Repito o teu nome como nessas noites. As quatro sílabas do teu nome restituíram-me nessas horas só nossas a que sou e procurava. Murmura. Sussurra. Cicia agora o meu nome. Sou, enfim, tua até ao fim dos tempos.
Que a pátina do tempo escorra da que eu fui a perplexidade das noites. Todas as que desceram à terra antes das nossas noites.

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