3.12.06

Grata

O meu espírito balança-me com o corpo

Entre You Don't Know You're Born de um Knopfler guardado no meu mp3 na cadência certa que me faz balançar o corpo como poucos naquela cinzenta sala de professores e a Music for Wellbeing, em recorte New Age que oiço nesta casa que é a minha; entre o perfume que me envolve as roupas negras com diáfana blusa em lilazes transparentes sobreposta vaporizando-se nos movimentos das minhas ancas e as volutas do incenso espiritual que me sobem pelas paredes do lar; entre esta vontade de mostrar-me a ti e aos da tua espécie no meu melhor e arrebatar com o poder que só uma Mulher-que-sabe tem e uma beleza que me assusta e sempre neguei escondendo-a do mundo por temer essas entradas em salas onde se voltam cabeças e me pensava apoucada espiritualmente... balançam-me os dias e as noites.
Sou ameninada e mulher-fatal, anjo deslizante e aranha-viúva-negra; feminina até ao âmago num tórrido blues entre Hayworth e Krall e rocker de pesadíssimas baladas-And-Nothing Else-Matters na narcose do meu desejo. Devo estar no fim dos tempos, de tal forma a vida me surpreende e a eu que escondi me assalta a cada curva. Ora diluviana em arroubos de sedução, ora recolhida nas protecções das folhas brancas onde outros escreveram, muito me denuncia: o pé bate no chão ao ritmo do que me ofereça, at random, o mp3; a pele do rosto cora e os olhos fingem indiferença semicerrando-se para dar ar grave, batendo na face as pestanas reflexivas; caminho na plena fruição das minhas entranhas, as coxas colunatas torneadas pelas mãos que só eu sei, o património por inteiro escondido dos olhos de um mundo desmerecedor por demasiado banal. Excito-me com Proust e outros sabedores-não-óbvios, desprezo os langores de tudo o que for demasiado evidente. Excitam-me a inteligência e os seus piropos calados; os "silêncios eloquentes" e os suspiros dos homens com imaginação para além do que em mim aparenta frieza; encanta-me a porta que me seguram, a passagem que me abrem, as palavras baixas denotando suave perdição, lábios de boca casta que se enchem com a idade, as narinas palpitantes como as minhas, sinais acusadores de sentidos alerta. Encanta-me a corte feita a compasso, um dia atrás do outro, ousadias esparsas que me desarrumem, em última análise, o penteado sóbrio e revelem os caprichos de cabelos que me denunciam (ruiva! cuidado, cuidadinho, sou ruiva no âmago!). Encanta-me o discreto despudor das palavras ácidas, fazer ler nas entrelinhas a quem eu quero, repudiar o dedo de um qualquer apressado guloso que, aparência distraída, me toca as mãos geladas durante a conversa, fingir-me desentendida, levar ao quase-desespero (o tântrico não é para fracos!): esperar é uma virtude e escolher uma outra mais exigente art de vivre... Cabe-me a escolha final: nunca me enganei. Reservado - ainda e sempre - o direito de escolher quem ame, sobre todas as coisas, as palavras impressas e ditas, a inteligência dos silêncios, os avanços a meu contento, as noites sem fim à vista, a impossibilidade do retorno de um jardim de delícias onde se pode muito bem perder noções básicas como a da passagem do tempo, a do nosso nome real doravante aposto de sinestesias, a do que se quer a partir daí. A incógnita será sempre parte da sinuosa equação. Não há paradigmas, só aproximações lentas. Requerida, por óbvia, a força do espírito. Sacio-me de almas com ideias. O resto é corpo a cumprir-se. Só. Da viagem, interessa-me o percurso, não o lugar onde aporto.
«Obrigada por (ainda) gostares da minha voz
e ma elogiares na medida certa»,
agradeço num cicio à tua orelha
tão desprevenida como quente.
Voltaremos a encontrar-nos.
Um destes dias, volto a ler para ti.
A ter de vir, que o resto venha por acréscimo, delícia minha.

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