26.4.06

Obrigada

Comoção fácil. Normal é comoverem-me os olhares de ternura dos meus sobrinhos; as mãos iluminadas da minha perfeitíssima irmã no meu rosto a dizer-me que a minha força a ilumina; o ar desalentado de alguém muito velho que, a custo, arraste os seus dias pela indiferença das cidades ou se desloque por bermas à mercê de todos nós que temos sempre tanta pressa...; o riso fundo de um bebé que me traga à tona dos olhos perdidos a paz das lágrimas quando a perfeição me toca; a força imensa de um qualquer aluno que, à custa de muitos falhanços, tenha provado ser capaz de resistir ao desalento e ganhar o ano lectivo; as recordações que a minha mãe tem da mãe dela e o choro sempre presente; a voz do único homem que me ouve de longe e já não gasta comigo a sua ternura há milénios; uma música mágica que o balançar das árvores acompanhe quando, de carro, regresso a casa; imagens avulsas de filmes; fotos de Sebastião Salgado; o som do vento no espanta-espíritos; gotas de chuva nas plantas; Proust; Pascal Quignard, levantar os olhos que aprendem e saborear uma das frases de Quignard num murmúrio repetido como litania, em cada uma delas Alexandria, Ítaca, o Graal; Jorge de Sena; Sophia; Claudel; Rodin; Brueghel, o Velho; Toulouse-Lautrec; Klimt (a história da vida, toda a esmagadora ternura de Klimt); Sisley; Mozart, mozart, mozart; uma jarra de flores amarelas na cozinha imaculada sob o sol; minúsculas pegadas infantis ladeando as dos pais na praia; o canto do pássaros; Lao-Tsé; Os «Velhos Contos do Japão» na tv (porque é que só eu os recordo, meu Deus???); Vidas de santos: Francisco de Assis, João (Cidade) de Deus; o cheiro das bibliotecas; o toque da areia morna da praia nos pés nus pela primeira vez nesse ano; a lonjura das estradas... o anonimato. O anonimato dos homens que construiram as catedrais, as estradas todas da Terra, os que fizeram as guerras dos outros, os anónimos em todos os carros cruzados num dia, as sepulturas sem nome, sem flores, sem luzes.
Há meses fiz o meu percurso diário de Azimutes para a Outra-Cidade-Marítima. Sobrevoei a partir da net. Juro por Deus que pouco na vida me soube como isso. Que pensamentos tive naquele cruzamento? Contra quem vociferei na mente furiosa? Quantas lágrimas me caíram no colo por detrás dos óculos de sol? Quantas vezes cantarolei, dancei ao ritmo de um som mais amalucado? Quantos milhões de vezes me perdi na paisagem à procura de respostas? Quantas vezes entrei em caminhos secundários de montanha para contemplar o mar do alto de alguma capela? Quantas vezes falei com Deus, lhe implorei? Há quanto tempo não Lhe rezo de joelhos, com fervor, como em menina? A quantas aldeãs sorri ao sorrir às crianças que lhes chamavam mãe?
Hoje, a partir do link, refiz os meus percursos. Emocionei-me. Emociono-me com a pequenez de cada vida observada do alto, os carros minúsculos sobre o asfalto, as florestas que ainda não foram abatidas, as casas com piscina que não são vistas da estrada, os casebres ditos assombrados nas quintas malditas, as grandes instituições, os recintos escolares, as casas que arderam, os descampados, as rotundas, a casa dos meus pais onde vivi, a minha casa, o meu farol, a minha rua, a minha escola, um carro escuro - o meu, talvez? - o sítio em forma de sarcófago onde dormem todas as gerações. O outro, mais pequeno, onde a minha avó repousa, a casa perto dos sons do comboio onde a minha avó viveu, onde corri em criança, os prados onde colhia flores, as nascentes da floresta onde ensopavamos os sapatos, o meu colégio entre os pinhais, as quintas onde comprei frutas e flores, os lugares onde dizia "Bom dia!" e me sabiam e diziam o nome.
Rever de cima o nosso passado, perceber onde nos leva a estrada de todos os dias, perceber que metas nos falta atingir, tudo isso vivi ao sobrevoar pela net os meus lugares. Pôr a vida em perspectiva. Azimutes perdida na paisagem, o cheiro da relva cortada, o riso da minha avó, a criança que fui, o mundo que me passa sob os olhos, o pedaço de terra onde o granito em bruto me cobrirá o corpo um dia. Ao lado, estão os mais belos prados que já vi.
Um dia, alguém saberá à escala mundial por onde andou exactamente, que lugares quer ver em dimensões reais, os sítios onde nunca irá, sobrevoar, talvez, o cemitério que lhe calhe em sorte.
Nunca se fica igual depois de sobrevoar, de ver em nanoframes as imagens do pequeno mundo pelo qual se circula. Formigas tão aparentemente pioneiras, não passamos, afinal, de processionárias em desesperos de Primmo Tempo. Comove-me ser o Bartolomeu de Gusmão que leva Baltasar e Blimunda, o sonho e a morte no ventre. Comove-me ver o mundo dos outros de cima. Comove-me ver o MEU mundo de cima. A certo ponto, tudo se anula no azul petróleo do mar profundo, para lá do farol, para lá da barra, para lá da rebentação, para lá do voo das gaivotas, onde o esquecimento começa e tudo se dilui. Liquefeito. Fundo. Dissolução.
Obrigada, Google.
Obrigada, Blasfémias.

2 comentários:

Anónimo disse...

Bonito! Gostei muito.

Anónimo disse...

Obrigada (L.S.???).

Críticas também serão bem vindas: quem escreve quer perceber o que cativa quem lê/leu. Só isso me importa.


:)