24.4.06

Christian Jacq

Vejo-lhe o perfil árabe. Lábios carnudos, nariz adunco, testa com a inclinação que faria supor um homem do tipo precipitado - uma falácia, talvez - grossa veia cortando a têmpora esquerda, testa ampla, barba grisalha, um ligeiro retrognatismo. De aparência esguia, teria passado ele mesmo por um egípcio dos primórdios daquela civilização, ou talvez um qualquer asceta mais em ânsias de segredos revelados do que em busca de saciedade às humanas misérias redutoras da vaidade.
Christian Jacq apaixona-me com a sua forma apaixonada de escrever: é o meu Heinrich Schliemann de hoje. Não busca Tróia nem beijou o rosto de Agamémnon: é outra a sua gesta. Mais uma vez, inclino-me sobre um dos livros de capa negra das Edições Asa - esta editora merece-me profundo respeito pelo trabalho desenvolvido, a excelente escolha de títulos, a versatilidade -, neste caso, As Egípcias, de C. Jacq.
Desde o capítulo "Mulheres no Poder", passando por "Amantes, Esposas e Mães", "Mulheres Trabalhadoras" e terminando no místico "Iniciadas e Sacerdotisas", o livro desdobra-se em relatos de reconhecido rigor histórico a que Jacq alia uma fantástica capacidade de contador de histórias que, torneando com magia os factos, dá do Egipto faraónico uma imagem de total esplendor, equilíbrio, uma equidade que envergonharia os homens de hoje nos Parlamentos do meu e de outros países, os seus malabarismos de nulo civismo, hipocrisia crassa, má-consciência.
Leia-se a contracapa:
«A civilização faraónica conferiu à mulher do Antigo Egipto um estatuto excepcional, que as sociedades modernas nem sempre conseguiram igualar. Em todos os domínios, do espiritual ao material, a mulher era considerada igual ao homem. Tinha a liberdade de se casar com o homem que escolhesse, de se divorciar com direito a uma pensão, de legar e de herdar. Podia ser chefe de empresa, especialista em finanças, proprietária de terras, administradora de bens ou consagrar-se aos mistérios divinos nos templos e santuários. (...)
As Egípcias são um retrato fascinante e surpreendente de uma das sociedades que mais apelam ao imaginário do nosso mundo moderno»
Deste autor, vale a pena a visão romanceada da vida de Ramsés. Conheço apenas a versão Ramsès Sous l'acacia d'Occident, col. Pocket, Éditions Robert Laffont, S.A., Paris, 1996. Num outro dia, virá ao caso falar sobre ou farei que assim seja, tal é a circularidade que se fecha sobre os apelos em volta. Um livro nunca esteve a mais.
Christian Jacq apaixona-me pelas lições que a História - o tempo no seu galgar de cavalo sem freio e cíclicos retornos - ensina aos insectos disfarçados de homens. Voa-me já o pensamento para uma redescoberta paixão infantil: Pieter Brueghel, o Velho, sobre o qual li recentemente e que me ensinou a ver brilhos diáfanos no aparentemente grotesco da humana condição. Há, na pintura assumidamente barroca de Brueghel - em pleno Renascimento gritando a perfeição em pináculos de gótico - muitos, muitos homens-insecto... Ah, mas não se (me) fale de pintura, que sou mais tentada por ela em superações da Tentação de Santo António do que Ícaro pelo sol.
Christian Jacq para a egiptologia; Jacques LeGoff para a Idade Média. Há, no mundo em volta, lugares perfeitos: a erudição é prova do sopro divino. Sim, Deus existe. O seu brilho manifesta-se na inteligência de alguns humanos com os quais temos o privilégio de ombrear por breves momentos, até que a morte nos sobrevenha e a eles os faça eternos.

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