25.2.06

Repito o de sempre: já todos fomos bebés ao colo da mãe. Quando muito, no de outros. Já houve, na vida de todos, quem os tivesse olhado com o sorriso que sobe da ternura. Mornos, aconchegados, perfumados, já todos os humanos foram inequivocamente amados por alguém. Desvelos, preocupações, sintonia de risos e de mimos.
Contudo, alguns transportam consigo as marcas da maldição, como Origami cuja vinca se perdeu entre os nossos dedos, o papel com veios torpes e mal conduzidos. Há quem tenha em si marcas de malformações de alma irrecuperáveis... Por um motivo ou outro, há pessoas que se perdem, "descarrilam", perseguem apenas objectivos maléficos, caminhando pelo mundo disfarçadas de progenitores, marceneiros, políticos, professores, jornalistas, pescadores, advogados ou prostitutos. Não têm marcas no rosto que os identifiquem, mas as futuras gerações serão retratos das plantas da sua "estufa": o viço da boa formação ou a torpeza que o mau íntimo produziu?
Professora há catorze anos, já reconduzi dezenas de vezes miúdos com o esforço suplementar da compreensão. Alguns há que se deixam guiar no sentido do que "está certo", tudo aquilo que, desde a Guerra II é considerado absolutamente necessário à Humanidade para que a coexistência prossiga sem males de maior.
Há, no entanto, alguns que olho com profunda apreensão: os meus olhos perfurados de xoano permitem-me ver longe e sei - tal como sei que quem maquinou o mal o desenvolve dentro do corpo que há-de rebelar-se contra si mesmo em miasmas de putrefacção - que muitas dessas crianças e adolescentes nunca serão seres humanos equilibrados, a distâncias abismais do que possa ser a felicidade.
Os motivos? Passam por:
a) falta de objectivos de vida (a comum preguiça, a sensação de que o mundo lhe deve tudo);
b) a falta de amor próprio (a comum insegurança ou timidez doentias, a falta de afectos dirigidos);
c) a falta de respeito pelo próximo (que engloba os preconceitos, a diminuição do outro no caso da inferiorização, a incapacidade de aceitar o sucesso alheio, sabendo-se que os padrões dos gostos são diferentes e que haverá sempre quem esmague o que é perfeito).
Há miúdos que têm olhos sem vida dentro. Não são gente com gente dentro: mentem, ludibriam; riem do que lhes parece menor e, pior, do que os afixie e lhes mexa com os nivelamentos, obrigando-os a reconhecer que se pode ser excelente: odeiam o sucesso alheio; podem, por outro lado, ser arrogantes, pensando que a vida lhes deve tudo e ninguém lhes dá o devido valor (reconheço, pela escrita, muitos bloggers padecendo destes males, fiéis retratos do país mesquinho que perpetuam; estes últimos, seres inferiores por natureza, precisarão de sistemáticos aplausos como segurança que "legitime" a sua casta infecta. Portugal é o seu solo fértil, o pântano preferencial). Muitos evoluem, mas... pelos piores motivos. Falácia, terrível engano da vaidade! Sobrará o vazio...
Típico dos egoístas: olham o mundo como um lugar que lhes satisfará todos os prazeres e confortos, o ego, a fome (incluindo a de afectos que não souberam conquistar com sinceridade de Alma aberta, antes investindo em babosos discursos hipócritas, licenciosos, pais de toda a falácia: estes são os manipuladores e, se tiverem público, serão os ditadores de modas, os tiranos do futuro).
Conheci crianças sem mãe, sem pai, sem pais, sem uma gota de atenção, sem casacos quentes nem mochilas coloridas (tudo nas suas vidas era cinza), com casa de chão térreo, sem água, com calos e bolhas nas mãos do trabalho, sem força para brilhar, por vezes, rosto colado ao papel, como se eternizassem aquilo que os adultos delas fizeram: seres definhantes, deprimidos, fartos de gritos e de hálito a álcool, de abusos de TODO o tipo. Entre estes miúdos há os que vão procurar - está explicado, a ciência já o fez - vidas sem qualquer hipótese de sucesso, pessoas iguais, pares agressivos, perpetuando a vida da infância e adolescência (quem não conheceu o que é bom, não sabe, muitas vezes, como lá chegar, caindo no ciclo vicioso).
Um professor também pode ensinar a ser feliz e isso passa pelo respeito ao trabalho, às escolas como santuários do amor à ordem e à justiça... Mas....
Mas... há miúdos que, vivendo no meio de tudo o que acima descrevo... BRILHAM com luz interior. Sorriem, apenas, ou mostram com franqueza uma fiada de dentes alvos como neve, rindo do opróbrio que a vida lhes deu. Há seres humanos com garra para vencer a pior morte: a morte interior. Têm alma, fibra, salero, cativam, encantam, trabalham, lutam contra os ódios em volta, senhores de perfeitas noções de justiça, ensinam-nos... Ensinam-me. Aprendo com eles. Humilde, aprendo com eles, revejo a miúda que fui e aquilo a que sobrevivi. Nada de muito grave, se pensarmos que todos têm de ultrapassar as suas adversidades. É isso que nos faz gente com gente dentro. O que não nos mata faz-nos mais fortes.
Conheci muitos miúdos e miúdas que tinham motivos para apedrejar o mundo. Nem olharam para as pedras do chão, mesmo se descalços, entretidos que estavam a observar a abóbada celeste, em busca do seu nicho de pequenas felicidades diárias:
«Eu sou o ...... Tenho doze anos. Tenho braços, tenho pernas, oiço, vejo, sinto. De manhã, danço em frente ao espelho com Bryan Adams gritando "Here I am, This is me, there's nowhere else on Earth I'd rather be".
Haverá sempre muita gente (ou pelo menos alguém) que me ame como sou. Estar na escola é um privilégio. Estar vivo é um privilégio. A vida nada me deve, mas eu devo-lhe uma segunda oportunidade. Quase morri com um tumor cerebral. Estou aqui. Incompleto, mas estou aqui. Mundo, aí vou eu!»
(...)

2 comentários:

Anónimo disse...

Inês,
os seus posts, além de límpidos exercícios literários, são, sempre, lúcidas leituras das vidas com que se cruza.
O meu obrigado pelos seus valiosos subsídios para um Portugal que não nos envergonhe tanto.
Abraços do "Poeta"

Anónimo disse...

Olá, Bom dia!

Aaaaaaaaaah, o "Poeta"! Agora fez-se-me luz: há dias brinquei com um anónimo e escrevi "Temos poeta", não foi?
:0)


Agradeço a gentileza do elogio ao post, mas penitencio-me: saiba que um dos leitores me enviou correcção de... 3 erros (glup!) e uma gralha (aiiii...). Se não fosse a dedicação de alguns/algumas "habitué(e)s" aqui do Azimutes, eu passaria a vida corada... pelos piores motivos (vergooooooonha)...

Perante a generosidade, Poeta, só posso dizer humildemente: Obrigada!

1 abraço!
Inês Alva, a(os) 1 de Março de 2006, pelas 14 e pouco.

:0)