26.12.18

Primevo


               Nos espaços intersticiais, o nada - que, de resto, não existe - vai ocupando lugares. 
       Há algo de cócega, irritante urticária, aquele "rash cutâneo"-efeito-secundário-medicamentoso que começa devagar, vai formigando, levantando ondas, como berlinde ou vidro de coisa partida sob o tapete da casa, gato minúsculo que, em cicios e ronrons desliza, ou a mera  infinitesimal mancha de pele arrepiada com microscópico pêlo que se eriça sob a camisola, naquele preciso ponto das costas em que os braços não cruzam, como deviam cruzar-se, também, por comodidade nossa, os limpa-pára-brisas, aos quais escapa aquela gota deslizante, precisamente a que mais nos irrita e desce (e que até contrariamos aumentando a velocidade e ela, então, sobe, a despeito da nossa fúria para que se horizontalize...). 
            É aquele vagar, aquela afronta descarada de tudo o que não se controla e desliza, r(eb)ola, avança, embrulha as linhas do tempo, rasteja e insidiosamente se impõe de forma pacífica, em liquidez xaroposa e, de repente, está ali, fixo, "em  modo" veni, vidi, vici imperial e... ficou. Já ficou ali.
              Desta vez, entre dias de sol quente - lustrando as coisas de um rasto de brilho após a chuva lavante e sempre bem vinda - e dias de névoa que-não-chega-a-ser-fria, mas é nortenha, benfazeja e simula paredes de fumo que tudo e nada escondem, em preparação da chegada de Janus, há uma ansiedade que se quer mais tensa: é uma saída do torpor invernal, mal ele começou, passado que é o dia 21 de Dezembro. Janus, o tal, deus das duas caras, traz dias de sol imenso, luzernas quentes, anacrónicas, no céu lavado pelos ventos ainda agrestes e, em contrariedade estudada, velhaco que é, traz igualmente dias de ar gélido, cortante, que espicaça a vontade de se isolar de tudo e obriga ao brio de o combater, porque a vida continua sempre. 
            Os dias cresceram, os piscos-de-peito-ruivo cantam, nidificam aqui e ali, espreitam - se lhes ponho o som de irmãos deles gravados por ingleses ou gente que o valha, ornitólogos, passarinheiros, birdwatchers, em vídeos youtubescos ou o meu assobiar imitativo que os fazem responder e vir, de pronto, vigiar o território e desfiar-me, em valsa de rival, o olhito preto espetado no meu ângulo - saltaricando pelo solo chumbado da magnífica chuva de há dias. Olá, erithacus rubecula!
             Acabo pelo início: o nada que, pelos espaços intersticiais avança e ocupa. Há um frenesim sob a pele quando posso reiniciar um cronómetro e acontece-me, muitas vezes nesta vida, sentir que recomeço do zero. Sem isso, teria vivido mil mortes, passe a oxímora (e aparente) contradição e, já agora, que se mo permita, a redundância, a tautologia, o pleonasmo (entenda quem puder, como dizia a saramaguiana prosa). Acabo no que me trouxe aqui: apesar das horrorosas quase-tragédias que me traz Janeiro, este terror do reinício traz também o que há de bom: recomeço(s).
            A ele(s) ergo a taça que, não sendo minha, a vida também me tem sabido emprestar: a minha esperança corrosiva, arraigada, arrasa o pior dos colegas, a mais monstruosa das vizinhas, o mais cego dos detractores dessa coisa verde, simultaneamente granítica  e licorosa que se me colou, dúctil e rija como sete vimes. Bebo, pois, este copo de água primevo deste pristino Janeiro, em honra da determinação: it ain't over 'till it's over... Clockwise it is! ↻

;0) I.A.

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