19.12.18

        Voltei.
        À biblioteca, quero dizer. 
     Já chorei de emoção ante a beleza pura - ali ao fundo, na parte das sugestões de leitura - porque Sophia me arrancou ao marasmo dorido de alma em recuo abertamente voluntário.  Quem, como Sophia - não ela, figura por demais hierática e vaga, sem doçura na fronte a não ser por tudo o que no mundo existiu de não humano e, portanto, da matriz do sublime, pelo que não encontrei nunca, na poetisa, o calor de quem escreveu sobre sereias, cavaleiros e fadas, tanto que creio ter sido figura ficcionada, a da mão que escrevia -, mas quem, como ela, figura esfíngica, para esmagar docemente com os mais belos casamentos de palavras que me foi dado saborear? Como escreve bem Sophia de Mello Breyner Andresen! É quase impossível - e é este um quase invisível, de (tão) minúsculo, "possível" - escrever-se assim! Algo de muito arraigado ao campo do divino, do diáfano, a uma espécie de matriz ontológica dos elfos, se desprende das palavras que escreveu Sophia!
(Esta escritora já deveria ter sido Nobel e, imagino não o seja, ainda, porque a mais bela das Línguas Mães - a nossa, esta com que escrevo e na qual me reconheço - perde e se perde na tradução, qualquer tradução, na velha ideia do sábio tradutore, tradittore...)

        E as palavras, as mesmas da matriz que ela usou, por onde andam? Que lhes foi feito, que perderam aquela espécie de goma arábica, canela, alcaçuz e as propriedades típicas do que é precioso e raro?...
        As palavras andam fugidas do vulgo, escondidas nas arestas dos livros que ninguém lê, espreitam, à laia de semi-confiança emprestada a quem as pretenda usar, mas logo esvoaçam, tímidas, descabeladas e lívidas, desmaiantes ao risco, até, de dissolução em transparência de teleportamento, emigram, saltam para outras dimensões onde só Pessoas, Hesses, Sophias, Yourcenars, Torgas ou Virgílios as modelam e as renascem em cadências de vida nova, como a chuva bendita que, por vezes cai, refrigério de caminhantes no deserto como eu e muitos...
        
        Vertiginosamente se vão apagando os lumes vários que me animavam por dentro, sabido que é estarmos num mundo tão falho como vário em abjecções multi-espécie.
        Deste mais-um-fim de período lectivo, observo o estado de sítio que alastra: a(s) escola(s), já não a vergonha do costume, mas uma vergonha ainda pior, muito maior do que o inimaginável: professores sem espinha dorsal, voluntariamente transformados em risíveis mangas-de-alpaca; proto-alunos com tudo às costas - Diabo incluído! - e incipiente, raquítico respeito pelo trabalho; burocracias várias, mostrengamente kafkianas; um ambiente, em suma, vomitivo a quem quer que tenha, ainda, por dentro, a habitá-lo, essa espécie rara chamada consciência ou os simples olhos na cara para ver.

        Aqui, ao meu lado, apesar de tudo, mora a esperança e o meu dia está salvo, numa prova viva do ainda impoluído mundo de alguns seres pequenos que caminham entre nós: um rapazinho de olhos cor do mar que Sophia trouxe para a sua poesia, um pequeno de dentes raros, que não terá, ainda, mais de nove pequenos anos - acaba de mo confirmar: o Afonso, que fará 10 anos em Abril! - , acabou as suas tarefas num manual de Português e agora, em silêncio, dando lições aos universitários já apodrecidos que convivem na biblioteca - ainda, o melhor lugar do mundo -... lê! Faz esse gesto raro de se deixar levar por uma singela lombada de livro infantil, folheia, detém-se nas cores das ilustrações e... lê! No seu estojo, um emblema de clube desportivo cosido mostra que não teme, ainda, num país onde a cobardia impera, afirmar a sua opinião e o seu lugar no mundo, ele, que ao lado da irmã mais velha (universitária com ar de uns 15 anos), ocupa um melhor lugar que o dos já contaminados pela apatia, pela descrença, pelo desgaste do excesso de informação. Eles, todos eles procuram nas teias sociais - de ignominiosa aranha ainda oculta - saber o que fazem os vizinhos e mais 350.000 pessoas no planeta; ele, Afonso, lê! Ainda a salvo da boçalidade à sua volta, lê. Viaja, sonha, constrói-se, afirma-se. Lendo. Fecho a minha visão - em permanente estranheza com o mundo à minha volta - considerando: Sophia teria adorado o Afonso. Resta-me desejar que algum professor, colega meu no futuro, saiba, ainda ensinar as palavras de Sophia ao Afonso, para que também ele goste dela e o mundo se reconstrua, a partir da página em branco, tal como Sophia renasce a cada vez que lemos o fecho do seu mais belo poema, "A forma justa".

(...)
Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco 
E este é o meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo. 

        

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