Apenas alguns excertos, humilde tentativa de ilustração das maravilhosas, siderantes 632 páginas desta obra-prima, tal como testemunhado aqui, aqui e aqui.
Os "títulos" assinalados com * são da minha autoria e tentam, sem desvendar excessivamente um texto tão avassaladoramente misterioso, orientar para elementos essencias na compreensão da psicologia do imortal(izado) duque de Bomarzo. Pequeno contributo - mesmo contra as leis! - para que mais se deixem enlaçar pela MAGIA de ler bons livros! Este livro comprei-o eu e não lamento nenhum cêntimo dos mais de trinta euros...
Emudecida de estupefacção, enfeitiçada, espero que Bomarzo possa surplomber (como diria Quignard) outros leitores, marcando-os indelevelmente. A quintessência foi encontrada: deteve-a e eterniza-a agora Manuel Mujica Lainez!
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(A estranha atmosfera de Bomarzo*)
«Desde muito criança que, obcecado pela minha inferioridade congénita, tratei de a disfarçar na medida do possível, ensaiando diante do espelho as posturas e os ângulos mais propícios. Olhava-me ao espelho que havia no quarto da minha avó, em Roma, e via-me a flutuar, enfezado, enfermiço, naquela luz esverdeada que titubeava nas salas do lúgubre palácio, da cor das tapeçarias, dos móveis, dos retratos e das panóplias, naquela neblina irreal solta em farrapos transparentes, que não era daquele tempo mas vinha da Idade Média e ficara a ondular pelos aposentos em cujos recantos se estancava sem conseguir sair da sua clausura glacial, e que a velhos e novos envolvia e impregnava, transmitindo-nos uma estranha lividez.»
(p. 24)
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(O gosto pelas artes*)
«É nos sentimentos que evoco que devem procurar-se as raízes do meu entusiasmo, partilhado com tanta gente da época, pelos testemunhos da antiguidade clássica. Nesses sentimentos, como mais tarde irei esclarecer, radica também o paradoxo do Sacro Bosque dos Monstros que inventei em Bomarzo. Os meus contemporâneos do Renascimento foram impelidos para os nobres vestígios das culturas anteriores pelo mimetismo helénico e imperial que caracterizou aquele tempo; pelo desejo de conhecer e de estabelecer os cânones da exacta formosura formal que os gregos e os romanos difundiram; ou simplesmente pela ambição aristocrática de possuir obras únicas e cobiçadas. Eu fui-o por razões mais complexas. Esperei acaso que a proximidade daqueles sobreviventes harmoniosos actuasse sobre mim como uma terapêutica mágica; terei talvez imaginado que, submergindo-me num mar de beleza, rodeando-me de mármores rítmicos até desaparecer atrás das suas entrelaçadas aparências, como no meio de um bailado imóvel e fragmentário em que cada coisa – a lisura de uma fronte, o arco de um braço, a proporção de um peito – suscitava emoções que conjugavam poesia e matemática, conseguiria esquecer-me de mim mesmo.»
(p. 25)
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(A ternura da avó*)
«A minha avó abraçou-me longamente. Com delicada ternura retirou-me (...) As suas mãos ogivais, que às vezes comparava com as minhas – (...) eu herdara os seus dedos ósseos, de grácil desenho, (...) -, pousaram-se-me suavemente nas faces, nas têmporas, no cabelo, ao longo do meu relato em que nada silenciei, e durante o qual as minhas lágrimas lhe humedeceram as balsâmicas mãos de rainha, enquanto os seus olhos se velavam igualmente, maravilhosamente tristes.» (p. 38)
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(Os objectos e os lugares têm alma...*)
«Há algum tempo, no Museu Etrusco Gregoriano, fui abalado por uma forte emoção quando dei de caras com as peças da minha armadura.
(...) ignora-se o que aquelas armas etruscas significaram para mim num momento doloroso da minha vida, como símbolos de solidariedade e de apoio. As coisas, que se afirma não possuírem alma, são possuidoras de segredos profundos que se imprimem nelas e lhes criam uma peculiaríssima espécie de alma. Estão cheias de segredos, de mensagens e, como não podem comunicá-las senão aos seres eleitos, tornam-se, com o passar dos anos, estranhas, irreais, quase pensativas. Quando nos referimos a elas falamos de pátina, de lustro, do toque das centúrias, e não nos ocorre falar de alma. A armadura de Bomarzo tem alma. E reconhecemo-nos no museu papal.» (p. 40)
«Desde muito criança que, obcecado pela minha inferioridade congénita, tratei de a disfarçar na medida do possível, ensaiando diante do espelho as posturas e os ângulos mais propícios. Olhava-me ao espelho que havia no quarto da minha avó, em Roma, e via-me a flutuar, enfezado, enfermiço, naquela luz esverdeada que titubeava nas salas do lúgubre palácio, da cor das tapeçarias, dos móveis, dos retratos e das panóplias, naquela neblina irreal solta em farrapos transparentes, que não era daquele tempo mas vinha da Idade Média e ficara a ondular pelos aposentos em cujos recantos se estancava sem conseguir sair da sua clausura glacial, e que a velhos e novos envolvia e impregnava, transmitindo-nos uma estranha lividez.»
(p. 24)
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(O gosto pelas artes*)
«É nos sentimentos que evoco que devem procurar-se as raízes do meu entusiasmo, partilhado com tanta gente da época, pelos testemunhos da antiguidade clássica. Nesses sentimentos, como mais tarde irei esclarecer, radica também o paradoxo do Sacro Bosque dos Monstros que inventei em Bomarzo. Os meus contemporâneos do Renascimento foram impelidos para os nobres vestígios das culturas anteriores pelo mimetismo helénico e imperial que caracterizou aquele tempo; pelo desejo de conhecer e de estabelecer os cânones da exacta formosura formal que os gregos e os romanos difundiram; ou simplesmente pela ambição aristocrática de possuir obras únicas e cobiçadas. Eu fui-o por razões mais complexas. Esperei acaso que a proximidade daqueles sobreviventes harmoniosos actuasse sobre mim como uma terapêutica mágica; terei talvez imaginado que, submergindo-me num mar de beleza, rodeando-me de mármores rítmicos até desaparecer atrás das suas entrelaçadas aparências, como no meio de um bailado imóvel e fragmentário em que cada coisa – a lisura de uma fronte, o arco de um braço, a proporção de um peito – suscitava emoções que conjugavam poesia e matemática, conseguiria esquecer-me de mim mesmo.»
(p. 25)
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(A ternura da avó*)
«A minha avó abraçou-me longamente. Com delicada ternura retirou-me (...) As suas mãos ogivais, que às vezes comparava com as minhas – (...) eu herdara os seus dedos ósseos, de grácil desenho, (...) -, pousaram-se-me suavemente nas faces, nas têmporas, no cabelo, ao longo do meu relato em que nada silenciei, e durante o qual as minhas lágrimas lhe humedeceram as balsâmicas mãos de rainha, enquanto os seus olhos se velavam igualmente, maravilhosamente tristes.» (p. 38)
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(Os objectos e os lugares têm alma...*)
«Há algum tempo, no Museu Etrusco Gregoriano, fui abalado por uma forte emoção quando dei de caras com as peças da minha armadura.
(...) ignora-se o que aquelas armas etruscas significaram para mim num momento doloroso da minha vida, como símbolos de solidariedade e de apoio. As coisas, que se afirma não possuírem alma, são possuidoras de segredos profundos que se imprimem nelas e lhes criam uma peculiaríssima espécie de alma. Estão cheias de segredos, de mensagens e, como não podem comunicá-las senão aos seres eleitos, tornam-se, com o passar dos anos, estranhas, irreais, quase pensativas. Quando nos referimos a elas falamos de pátina, de lustro, do toque das centúrias, e não nos ocorre falar de alma. A armadura de Bomarzo tem alma. E reconhecemo-nos no museu papal.» (p. 40)
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(O espírito aventureiro do pai e a sua insaciável sensualidade*)
«Ao crepúsculo, partia a cavalo, com a barba branca mergulhada no rebuço, sem medo dos salteadores e sem outra defesa além da sua espada e do seu punhal, recusando a escolta dos seus pajens e escudeiros, e regressava com o sol alto, muito pálido, muito marcado de olheiras, gritando que lhe dessem de comer.» (p. 41)
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(Ironias da História...*)
«Já que menciono de novo Odet de Foix, visconde de Lautrec, devo referir um facto que na minha opinião é interessante. Lautrec e o meu pai, que eram íntimos, devem ter discutido um dia o meu caso. (...) Ambos se consideravam, no seu másculo poderio, como dois semideuses, como duas vivas estátuas heróicas, paradigmas das suas respectivas linhagens. E o irónico do caso é que o nome glorioso do visconde de Lautrec, governador do Milanesado e de Guiena, tenente-general de Francisco I em Itália e irmão de Madame de Chateaubriand, uma das mais belas favoritas do rei, foi eclipsado, no decurso dos séculos, pelo nome do seu descendente, Henri-Marie-Raymond de Toulouse-Lautrec-Monfa, um anão pintor que frequentava maus ambientes e que foi muito mais disforme do que eu. Ninguém, para além dos estudiosos de históricos pormenores, se recorda daquele que pensava ser o Lautrec culminante, o colossal Lautrec de bronze que estendia o seu bastão de comando sobre a Itália; ao passo que ninguém mais ou menos culto desconhece a obra e os pormenores da vida do seu monstruoso e genial herdeiro, um gnomo absurdo, pintor de cartazes de cabarés e de prostitutas desconjuntadas, pelo qual o valente capitão Lautrec, se tivesse podido sabê-lo, teria sentido asco como por uma sevandija humana e por um insano baralhador de cores intoleráveis. (...) E deste modo acontece o cáustico paradoxo de um anão e um corcunda excederem em méritos, muito de longe, os dois guerreiros triunfais de quem procedem, o visconde de Lautrec e o duque de Bomarzo, que seguramente consideravam que a sua glória de emplumados combatentes era um supremo cume, e que, se imaginassem o que depois aconteceu, teriam declarado com amargo desprezo que o mundo, entregue a abomináveis aberrações, enlouquecera. Suponho que isso, tão perturbador, tão perturbador de modos preestabelecidos, é aquilo a que os britânicos chamam “justiça poética”. Toulouse-Lautrec e eu estamos irmanados no tempo por uma forma póstuma e extravagante da desforra.»
(pp. 42-44)
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(A única, fugaz ternura do pai*)
«O relato aquecera o meu pai com o mesmo fogo que o excitara ao contemplar, no meio das cortesãs e dos nobres toscanos, a marcha gloriosa de David. (...)
Como era seu costume, enquanto falava pusera-se a andar a todo o comprimento da sala, e eu – foi essa a única ocasião – não senti medo da sua proximidade. É provável que o meu pai tenha apreendido no ar essa efémera aproximação espiritual, porque se deteve diante de mim e, como que distraído, como se não desse pelo que estava fazendo, pois que entre ele e eu se interpunha a recordação do David de Miguel Ângelo, roçou-me a cara com um dedo. Depois tornou às suas passadas militares. O seu monólogo alargou-se aos projectos colossais de Buonarroti [Michelagniolo Buonarroti = Miguel Ângelo].
(...)
Essas utopias enfeitiçaram-me então e depois, mas o seu deslumbramento alucinante não actuou imediatamente, e, na noite em que o meu pai falava, iluminado pelas chamas da lareira, essa inspirada maravilha quedou-se relegada para segundo plano, como um fundo de titânicas construções que escravizavam e transfiguravam a natureza, um fundo em cuja confusão se destacava o perfil do meu pai, que se detinha, me roçava a face com um dedo e se afastava, como um São Jorge alanceador de endríagos, para a região onde se erguiam as criaturas infinitas, atlantes que mergulhavam nas nuvens os rostos de pedra, deixando-me algo mais importante que esses desvarios, frenesim dos génios: a sensação fugaz do dedo indicador que, por um segundo, descuidadamente, com uma fácil espontaneidade afectuosa, tinha pousado na cara do filho corcunda do duque.
Foi esse o único momento autenticamente venturoso que ao meu pai fiquei a dever; o único durante o qual vibrámos em uníssono. David chamou-nos por um instante para debaixo da sua sombra.»
(pp. 50-1)
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(Uma sensibilidade mágica em relação ao belo*)
«E o que na minha infância constituiu a minha única felicidade, o pequeno tesouro acumulado apesar das dificuldades que se opunham o meu anseio (...), foi a memória dos meus passeios pela velha Roma e das minhas idas a Bomarzo, pois uns e outras me ajudaram a explorar e descobrir o melhor de mim mesmo: a capacidade de descobrir a beleza e de a achar onde para os outros estava oculta, como que ausente, numa coluna, num arco, na curva de um rio, numa nuvem, no lânguido vaivém de um ramo verde e cinza desenhando com os seus pincéis de sombra caligrafias orientais.» (p. 52)
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(Bomarzo, o nicho, será comparável com outros lugares? *)
«Depois de Bomarzo, feito de pedras ásperas, de cinza e ferrugem, apertado, tosco, Veneza delineou-se à minha frente, líquida, aérea, transparente, como se não fosse uma realidade mas um pensamento estranho e belo; como se a realidade fosse Bomarzo, agarrado à terra e às suas secretas entranhas, ao passo que aquela incrível paisagem era uma projecção cristalizada sobre as lagunas, algo assim como uma ilusão suspensa e trémula que logo a seguir, como na miragem dos sonhos, podia ruir silenciosamente e desaparecer. Não que eu considerasse Bomarzo menos poético – Deus me livre -, mas em Bomarzo a poesia era algo que brotava de dentro, que se gerava no coração da rocha e se alimentava do trabalho secular das essências escondidas, ao passo que em Veneza o poético resultava, exteriormente, luminosamente, do amor da água e do ar, e, por consequência, possuía uma qualidade fantasmal que zombava dos sentidos e exigia, para ser captada, uma comunicação em que se fundiam a emoção estética e a vibração mágica. Foi esta a minha primeira impressão perante o fascínio. Compreendi depois que em mim, porém, a força misteriosa de Bomarzo, menos manifestada à superfície, mais reconditamente vital, actuava com um poder muito mais fundo que aquela sedução cortesã, feita de jogos refinados e de matizes excitantes; mas, como tantos, como todos, sucumbi ao chegar diante do encanto da cidade incomparável, atraiçoei na memória a minha autêntica verdade – cada um tem o seu próprio Bomarzo – e pensei que não havia, que não podia haver no mundo nada tão belo como Veneza, nem tão rico, nem tão exaltante, nem tão obviamente criado para proporcionar aquela difícil felicidade que nós, desesperadamente sensíveis, procuramos com ânsia, esgotando seres e lugares.»
(pp. 303-4)
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(Aprender a viver na grande cidade*)
«Mandei os meus pajens à procura de alojamento, pois não o tinha reservado, e, perdido na diminuta Babel, sentei-me a observar o Canal Grande [em Veneza], sulcado por umas barcas carregadas de palha e de lenha e por outras que arrastavam pela água, como mantos, umas compridas redes. Não contava eu com a espionagem, elemento essencial da Sereníssima, que cobria com fios invisíveis toda a cidade, de sorte que nada do que nela acontecia, por mínimo que fosse, podia guardar o seu segredo e se, por exemplo, um nobre cometia o erro de murmurar contra os governantes, mesmo que cochichando e imaginando-se ao abrigo da delação, era advertido duas vezes e, à terceira, sem mais delongas, afogavam-no. Os informadores comunicaram imediatamente a minha presença, que eu não tinha intenção de dissimular (...)»
(p. 306)
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(Seduções nocturnas de Veneza*)
«A barca tinha a proa dourada e uma câmara forrada de cetim vermelho e coberta de flores armadas em pirâmides. Na parte posterior, aos pés do gondoleiro que se movia ritmicamente, voluptuosamente, havia dois músicos e um cantor. Distingui na obscuridade vários mascarados (...) Nós (...) também nos disfarçámos, utilizando as caretas que nos ofereceram, as pitorescas bautte brancas e negras, de compridos narizes, que, como uma mascarilha, cobriam metade do rosto e que o teatro chocarreiro dos mimos começava a difundir. Entreguei-me jubilosamente ao feitiço tão italiano do disfarce, que iria propagar-se enormemente com o passar do tempo e que já então era de tal modo atraente que, quando a corte de Ferrara quis lisonjear César Borgia, lhe mandou de presente cem máscaras diferentes... as quais, certamente, bem podiam interpretar-se como uma alusão irónica.»
(p. 328)
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(Fugacidade da vida*)
«Embrulhei-o nas peles do lucco, e ouvi-o soluçar enquanto enumerava, tiritando, os tesouros que com o palácio se perdiam para sempre. Viver era aquilo: perder, ir deixando tudo para trás no caminho percorrido, despojar-se... E ser imortal equivaleria a terminar mais nu, por fora e por dentro, que o grácil João Baptista Martelli quando se postara com ébria soberba no meio das pranchas do nosso batel.»
(p. 331)
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(Lorenzo Lotto, o retrato do duque de Orsini e revelações sobre o pai*)
«Combinei pois uma entrevista com Magister Laurentius [Lorenzo Lotto, o pintor] no palácio Emo, e o mestre foi lá visitar-me. Parecia-me oportuno que antes de deitar mãos à obra o pintor me conhecesse bem, pois sabia que cada um dos seus retratos se alimentava de um caudal psicológico enriquecedor que guiava o autor à medida que o ia criando. O procedimento agradou muito a Lotto, e saímos várias vezes em passeios por Veneza. Ele contava nessa altura uns cinquenta e dois anos, mais vinte e quatro que os que tinha quando pintou o meu pai para o políptico. Era um homem taciturno, de poucas falas, sem características físicas notáveis para além dos seus grandes olhos negros, e possuía uma sedução difícil de definir, nem do lado do Anjo, nem do lado do Diabo, que emanava porventura da sua concentrada timidez doentia, da sua susceptibilidade que se feria com a menor fricção e daquele silêncio que se adivinhava tenso de emoção. Numa altura em que a opulenta onda gozosa da pintura veneziana progredia teatralmente em direcção à espuma suprema do Veronese, e se preparava para explodir junto de esplanadas de mármore onde se sucediam os frívolos festins, Lorenzo Lotto continuava a ser, em aspectos que se relacionam com a sua introversão sombria, indício de fogos subterrâneos, um solitário da arte, voltado com a sua perplexa angústia para as névoas interiores dos seus modelos. Por isso ele me atraiu e nos entendemos, apesar da eufórica superficialidade que fazia ressaltar o que em mim havia de barroco. Encontrámo-nos numa zona sombria – a dos ansiosos, a dos insatisfeitos, a dos incapazes de uma confissão plena – e nela convivemos. (...) Todos esses temas se conjugavam em Lorenzo Lotto, e eu pressenti-os então, de uma forma confusa, porque o pintor evitava a confidência e silenciava-a, ou mudava de conversa mal o seu interlocutor entreabria uma das portas que levavam às regiões crepusculares da sua intimidade. Senti-me confortável junto dele, apesar das suas inquietações, das suas reticências, das suas hesitações, das dificuldades de um diálogo em que avançávamos como se o seu principal mérito consistisse em esconder espinhos. Em vão tentei que me falasse do meu pai.
- Era um senhor esplêndido – disse-me uma manhã, repetindo a fórmula consabida (...) -, e talvez no seio da sua família não se lhe tenha atribuído totalmente o devido valor, não se tenha penetrado até ao fundo da singularidade do seu carácter.
Pedi-lhe que esclarecesse o seu pensamento, mas a única coisa que consegui foi fazê-lo murmurar que dentro da família é onde menos se vislumbra a individualidade dos que dela fazem parte, porque os preconceitos e os pequenos interesses pessoais (quando não o amor cego) obscurecem a visão profunda.»
(pp. 333-4)
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(Quem é, afinal, nas suas contradições, Pier Francesco, quem é este Vicino Orsini, duque de Bomarzo? *)
«Eu era aqueles olhos pardos, aquele cabelo castanho, corredio, quebrado, recolhido atrás das orelhas, aquelas sobrancelhas finíssimas, aquelas maçãs do rosto salientes, aqueles lábios vermelhos, apertados mas famintos, aquele agudo queixo, aquelas inteligentes, delicadas mãos nuas, aquela intensidade, aquela reserva, aquele orgulho, aquele poder oculto e latente, aquela chama fria, aquela equívoca, indefinível violência que se pressente no gelo da solidão aristocrática, e aquela ternura também, desesperada. Na galeria dos desesperados de Lotto, nenhum me ganha. Só um melancólico e ambíguo como ele podia captar-me assim, aprisionar-me assim com os seus pincéis, como sem dúvida aprisionou o meu pai. Há sem dúvida em ambas as imagens, na do meu pai e na minha, muito de Lorenzo Lotto, daquilo que ele era, do que ocultava e combatia e apenas se manifestava na sua pintura, mas nós, os dois Orsini, oferecemos-lhe, a um quarto de século de distância, com as nossas essências obscuras, afins da complexidade da própria essência dele, a desejada ocasião de se expressar e confessar, expressando-nos e confessando-nos a nós. Por isso me dói que não se saiba que aquele personagem, o Retrato de um Desconhecido, o Retrato de um Gentil-homem no Estúdio, é Pier Francesco Orsini, duque de Bomarzo, e que haja um comentarista qualquer a propor para modelo do mesmo um tal (...).
Terminada a obra, contemplei-me na sua pálida e arroxeada pureza, como num espelho. À esquerda, Lotto colocou uma janela que abre para a lonjura luminosa do mar, e que promete, no recolhimento desordenado do estúdio, tão denso de furtivas chaves, uma esperança de calma luz. E reconheci-me plenamente na comovedora figura, na sua máscara de incendiado alabastro. Era assim eu, triste, estranho, indeciso, sonhador, turvo e nostálgico. Um príncipe intelectual, um homem daquela época, pouco menos que arquetípico, situado entre a Idade Média mística e o Hoje saciado de matéria; simultaneamente preocupado com as coisas da terra lasciva e com as de um além problemático; brando e forte, ambicioso e vacilante, senhor da elegância que não se aprende e daquela que os textos ensinam; desfolhador de rosas murchas, amigo do lagarto luxurioso e da salamandra imortal. A corcova, a carga bestial, dolorosa, não está presente na tela mas pesa-lhe – e essa é uma das maravilhas da arte de Lotto - pesa-lhe, invisível, no seu donaire espiritual, na sua atmosfera metafísica.»
(p. 334-6)
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(A magia antiga de Bomarzo apodera-se de Vicino Orsini, suspenso do mundo*)
«As superstições do lugar surpreenderam-me uma vez mais, e senti, através das lousas do chão, o bafo da terra etrusca que respirava como um imenso animal escondido. Olhei para o céu crepuscular em que começaria a acender-se a palidez das constelações, e lembrei-me do que diz Giordano Bruno acerca dos astros, animais tranquilos também, de sangue quente e costumes regulares, empurrados pela razão. Tudo vivia ali em redor: a terra sobre a qual assentavam os rochedos de Bomarzo; os planetas suspensos na sua abóbada, as figuras e os objectos trémulos refugiados no seu coração penumbroso. No meio daquele universo cheio de pasmosas correspondências, mantido pelo sortilégio de laços encantados que lhe reforçavam o equilíbrio inexplicável, envolveu-me uma paz que apenas em excepcionalíssimas ocasiões experimentava. Ergui uma esfera; levantei com dois dedos um pingente de âmbar; desdobrei um manuscrito decorado com alarmantes miniaturas de demónios nus e ermitões e mulheres tentadoras, sem outra roupa além dos seus colares e diademas; empurrei um fantoche que parecia dotado de tanta vitalidade como o homúnculo de Paracelso, e as horas escaparam-se-me, velozes, numa milagrosa amnésia, enquanto à distância cantava a rouquidão dos galos e os primeiros carros partiam em direcção às eiras e às ceifas.»
(p. 452)
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(A construção do Sacro Bosque de Bomarzo e o último reduto do Ninfeu *)
«E, pela primeira vez em anos, descansei, como se o olhar de Deus não pudesse perseguir-me até lá em baixo. Ninguém, fora os meus cúmplices, entraria naquele reduto (...). Ignorariam a existência daquele abrigo. Ali, perto dos túmulos policromados dos terríveis etruscos, o duque de Bomarzo estava seguro, como um animal no seu covil. Tudo o que o rodeava lhe era afeiçoado, tudo aquilo o compreendia e amava com o amor subtil que as coisas sentem pelos que as escolheram, e que estabelece entre umas e outros uma esotérica união. Muitas vezes, estando a escrever, me levantei da mesa apinhada de livros e de folhas garatujadas, para me aproximar, como um sonâmbulo, de uma cratera de vidro com uma cabeça de fauno na borda, ou de um alaúde que me fazia lembrar os de Hipólito de Médicis, ou de uma breve figura de ouro, e, sem motivo, como fizera com o torso do Minotauro, os beijar longamente.»
(p. 456)
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(A construção do Sacro Bosque de Bomarzo e o último reduto do Ninfeu *)
«Aquele era apenas mais um passo no caminho para os arcanos da magia, e Sílvio entrou pela senda tenebrosa. (...) Nele revivia o velho sonho dos alquimistas, o da Pedra inencontrável que transmuta os metais inconsistentes em ouro.»
(p. 456)
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(Ao estilo de Edgar Allan Poe, o ambiente como maldito, um estado de alma*)
«E o silêncio apoderou-se de nós, carregado de expectativa, porque parecia que os imperadores romanos, distanciados na galeria e na sombra tortuosa do Minotauro, esperavam também, tensos, agudos, enquanto o vento fustigava os vidros e retorcia, entrançando-as e desentrançando-as, as chamas da lareira.»
(p. 463-4)
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(A busca da Quintessência*)
«Acima de tudo, Sílvio não devia sequer farejar a proximidade do prodígio. Para o distrair, facilitei tanto quanto possível as suas próprias investigações: a procura da Pedra. Se a encontrasse, melhor para ele. Aos anteriores elementos do laboratório acrescentei outros, alguns bastante dispendiosos: o forno de areia, o aludel espanhol formado por vasos de terra envernizada, o pelicano, de cujo ventre partiam dois tubos; e aquela multidão de objectos de herméticos nomes, os quais todos designam, com ligeiros matizes, o ovo filosófico: a prisão, o sepulcro, a casa do frango, a câmara nupcial, a matriz, o ventre da mãe, tudo o que podia exigir-se para se obter aquilo que também mudava de nome e se chamava, segundo os diferentes alquimistas, Pedra Filosofal, Pedra do Egipto, Pó de Projecção, Grande Elixir de Quintessência, Grande Elixir de Tintura de Ouro ou Grande Magistério.»
(p. 474)
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(Os estertores da guerra *)
«Ah, tal como em Hesdin, tal como em Thérouanne, a beleza decorativa dos poetas épicos e dos pintores áulicos, com grandes atitudes estéticas, com frases célebres, com capitães esplêndidos que usavam os aços como círios, dava lugar a uma consternadora confusão, a uma repugnante carnificina de vísceras semeadas entre bestas e estoques partidos, em que era difícil reconhecer o aliado e o adversário, e em que o monstro de metal e de espuma devorava tudo o que achasse no caminho, vomitando fragmentos de prata cinzelada, de esmalte, de ouro, de marfim, que o sangue tingia, escarlate, obcecantemente vivo no meio dos estertores da morte, até que acabou por se confundir também com as púrpuras serenas do ocaso!»
(pp. 609-610)
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Tão eterno como as pedras de Bomarzo e o próprio Renascimento ao qual escreve um hino,
Manuel Mujica Lainez só pode dormir entre os anjos!
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