Como quem recebe as punhaladas somatizadas que a paixão instila, reconheço agora que ler Bomarzo obriga a doses homeopáticas intercaladas com paragens. Tal como a perfeição nos deixa à bout de souffle*, forçando a calculados regressos à realidade, assim digerir certos excertos desta obra de construção barroca (e para leitores de grande, paciente fôlego!) leva a paroxismos de prazer que convém reduzir à lentidão do sussurro que precede o "eloquente silêncio" **... Reconheço-me no que leio. M.M. Lainez torna verdadeiro sobre o papel - tal como o duque de Orsini eternizou em pedra os seus sonhos no Sacro Bosque dos Monstros - tudo aquilo que eu sempre soube e sinto desde a mais tenra infância: o mundo imaterial fala-nos desde a sua aparente quietude ou falta de alma. Talvez por isso - e apesar de tudo o que me aconteceu desde 2003 -, procuro o mesmo que animou Milton e... ainda acredito em sinais.
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«Há algum tempo, no Museu Etrusco Gregoriano, fui abalado por uma forte emoção quando dei de caras com as peças da minha armadura.
(...) ignora-se o que aquelas armas etruscas significaram para mim num momento doloroso da minha vida, como símbolos de solidariedade e de apoio. As coisas, que se afirma não possuírem alma, são possuidoras de segredos profundos que se imprimem nelas e lhes criam uma peculiaríssima espécie de alma. Estão cheias de segredos, de mensagens e, como não podem comunicá-las senão aos seres eleitos, tornam-se, com o passar dos anos, estranhas, irreais, quase pensativas. Quando nos referimos a elas falamos de pátina, de lustro, do toque das centúrias, e não nos ocorre falar de alma. A armadura de Bomarzo tem alma. E reconhecemo-nos no museu papal.» (p. 40)
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«E o que na minha infância constituíu a minha única felicidade, o pequeno tesouro acumulado apesar das dificuldades que se opunham o meu anseio (...), foi a memória dos meus passeios pela velha Roma e das minhas idas a Bomarzo, pois uns e outras me ajudaram a explorar e descobrir o melhor de mim mesmo: a capacidade de descobrir a beleza e de a achar onde para os outros estava oculta, como que ausente, numa coluna, num arco, na curva de um rio, numa nuvem, no lânguido vaivém de um ramo verde e cinza desenhando com os seus pincéis de sombra caligrafias orientais.» (p. 52)
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* "sem fôlego".
** Em tua honra, amigo de todas, todas as horas!
1 comentário:
Olá, Inês!
Está a revelar-nos um mundo fascinante através da sua leitura. Quem consegue levantar os pés do chão ganha outra dimensão, a dos eleitos.
Abr.
Zé
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