2.2.06

Epístola




... de Inês para...


Azimutes, noite caída com névoas. Paz interior de espessura tão densa
como raras vezes.
A sós, ouvindo Mozart em ambiente aquecido
após a caminhada que me trouxe a dor óssea,
daqui fala a ternura.
Caríssima desconhecida,
Imagino-lhe um rosto de sorriso ainda mais terno do que dizem ser o meu. De mãos acriançadas, teclo-lhe desde a terra onde o farol me espreita o mar imenso. Em paz, tenho hoje a serenidade do dever cumprido.
Há um qualquer anjo que me traz à boca a doçura de tudo o que é nobre: atraio pessoas que me envolvem em atenções que não faço por merecer. Nada faço com intenções outras: não sei o que seja ser-se interesseiro, não há em mim sofismas, apenas uma coerência que já me trouxe o devido preço. Eu suporto, tudo suporto, por ser essa quase-minhota de granítica filigrana. Sinto-me isso: filigranítica, amiga.
As coisas acontecem-me: aconteceram-me maravilhosos progenitores, os melhores irmãos, aconteceu-me o amor, amigos raros porque me cansa cultivar a doçura pelas multidões, cansei-me de festas, de ser popular, de estar na berlinda, de falar todas as línguas, de ler todos os livros, de falar pelos outros "diz tu que tens coragem"... de ter acenos e sorrisos vindos de todos os lados. Cansei-me de ser a simpática-crónica. Não que isso me fosse mau, mas despendia alma, contavam-me tudo, vidas, dramas, desamores, angústias, projectos, e, com isso, eu trazia vidas dentro, mortos dentro, pinturas dentro, amor borbulhante dentro, quase a gota que derrama muito do líquido de um copo. Sentir de mais é isso ( e não me venham com doenças bipolares que me fazem rugas de tanto gargalhar).
Pedia ao Pai que me desse gente em volta para repartir tanta ternura. Ainda estou a tempo, mas, por momentos - dois anos, já? - fiz experiências com a antipatia. As pessoas não passam, signora, de crianças pequenas, precisam tanto de aprovação! É isso o designado feeling of belonging? É legítima, a insegurança; é-lhes legítima, a incompletude em fissuras desestruturantes da coerência. Como me disse que não o é, também eu não sou capaz do ódio. Perdoo, não esquecendo, contudo, as ofensas e acreditando no que me diz: nunca são as vítimas dos ofídios a esmagá-los. Alguém o fará. O melhor aliado está connosco. Chamemos-lhe Tempo.
Ah, mas esgotam-me, por aqui... Querem-me líder, querem-me na política, associam-me a ideias que não tenho, de facto, querem-me a comandar, a falar pelos que não têm boca por falta de coragem, querem-me em camas que não desejo, em bocas que não me sabem o sabor casto, devorada por olhos que me percorram o corpo que se priva de mundo. Não entendem que aqui não existe o vazio. De alguma forma, caminho sobre penas, elevaram-me a uma nuvem, quando, em volta, conheço milhares que caminham sobre vidros. Deus ama-me, de facto. Como explicar que tudo encaixe tão perfeitamente? Chego a sentir dor física de tanta plenitude. Salto da cama, pelas manhãs frias, esqueço as contrariedades, os que querem atrair-me o mal por não saberem possível ser-se assim. Não há mérito em ser-se afortunado, pois não? ninguém tem culpa de ser incréu, de nunca ter fitado o alto, de não ter uns nichos que sejam de vida espiritual. Que acorram aos beberetes. Nós estaremos no jardim, contemplando o azul de um qualquer lago, beberemos das flûtes das corolas, mariposas tresloucadas, subiremos às árvores, pés nus nos relvados ainda húmidos dos aspersores. Seja o meu Tom Sawyer; serei o seu Hucklberry Finn, rirá como nunca da seriedade das minhas perplexas conclusões lapalissianas! Gargalhada garantida, se a lua estiver cheia: tenho seis anos de idade e ponho-lhe sobre os ombros o meu braço comparsa de risotas. Verá então uma carangueja histriónica e absolutamente (ir)responsável na busca do riso alheio! Vale a aposta?
Assim me reparto entre risos de infância, cultivando, por vezes, a melancolia como exercice de style, estado-extático de pura contemplação. Será, talvez, da lua? Sorrio, pensando em como deve parecer-lhe lamechinhas esta canceriana com ascendente balança (dizem que não há ninguém mais feminino e magnético, o que também pode ser esgotante, sei que o sabe, porque é o magnetismo em pessoa, si si, usted misma, señora, no sea tan modesta, hé?), porque uma genial aquariana só pode ser uma genial mulher. Estirpe rara, elevado espírito, música, inteligência ultra-superior, um olhar afiado, humor electrizante (terá, como eu, saudades do blog Reflexos de Azul Eléctrico? Eia pá, aquela densidade!...).
Como posso agradecer o suficiente por tê-la conhecido? Inspirou-me para uma prenda, sabia? Também eu comprei de David Lodge, Autor, Autor para oferecer à minha melhor amiga (a mais pertinho, no momento), uma... aquariana, uma mozartiana, uma thomas-alva-edisoniana, recém-doutorada com distinção em... Paris!
Senhor, fazes-me rodear de génios, como não sentir-me grata na pequenez? E génios com humildade, dom de sábios, bem supremo entre os Amigos!
De facto, na outra vida devo ter feito maravilhas, tal é a quantidade de bens que me sumulam os dias! Por isso, deixe-me repetir-lhe que sinto o subido privilégio de tê-la desse lado. Mesmo que nunca se entrevejam os nossos rostos, sei que me faz votos de Bem. São em dobro, os meus!
Estarei onde me sabe.
Bem haja. Sempre.
Desde este lado do vidro, o meu abraço fraterno.
Inês Alva

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