9.6.08

Fidelitas

Em cada canto, uma figura alada. Mesmo se sem asas, ficaram conhecidos por as terem no espírito. Acontece-me isto, assim, sem esforços, como se coleccionasse anjos. Irrompem pelos dias. É como se me chamassem das lojas, ou então, oferecem-mos. Um buda de madeira negra como os meus medos; um santo António de marfinite branca como as nuvens ao sol; um menino deitado que o meu próprio pai fabricou, em gesso por cozer, um que me cabe na palma da mão - ainda sobra muita palma! - e eu deitei na manga preta de couro que protege a caixa de velocidades, ali mesmo de onde sai o manípulo das mudanças do carro. Viajou comigo os cerca de seiscentos metros e sorri, deitado no vidro da mesa de entrada, sobre as minhas caixas de barrocos tecidos bordados, onde guardo os colares que ponho para sair à rua. A sua perfeição de traços sorri-me com maçãs do rosto verdadeiras na forma, graciosos joelhinhos, braços de bebé, cabelos de um angélico anelado, subtil doce sorriso. Todo branco, dirige-me o seu abraço. Por olhar para ele, evito ser mais rígida com o meu pai, que por vezes me parece quase abominável, apesar de todos os princípios que me ensinou e de ser uma das poucas pessoas que consegue amar-me - apesar do meu mau feitio - exactamente como sou. O meu pai, disso estou certa, ama-me exactamente como sou. Além disso, nunca se riu dos meus sonhos. Apesar da sua decrepitude, de não se esforçar por formular, sequer, frases completas nos seus quase sessenta e cinco anos, o meu pai enche-me de orgulho pela sua força de carácter. Eis um homem que, inadvertidamente, me afastou para sempre de todos os outros homens, não porque não estejam à sua altura, mas sim porque, de facto, sou forçada a considerá-los, a todos sem excepção, seres inferiores. Todos os homens são seres inferiores. Desde e para sempre.
Já amei alguns homens, a poucos me dei a conhecer e afastei todos os que me amaram. Nunca me arrependi. Observo-os e aprendo. Nunca fui tão feliz como quando me desapaixonei. Esta ácida e suave lucidez é o que mais amo, de todas as faculdades que me deu o Pai do céu. Como os homens se apaixonam facilmente por mim - creio que justamente por me saberem indomável -, evito mostrar-lhes a minha meiguice crónica, evito as conversas que com eles quero ter, que vão muito, muito além do desejo. Simplesmente, não entenderiam, porque não lhes está nos genes. Quero vê-los por dentro, a nu, como nunca ousariam mostrar-se a ninguém. Quero ler-lhes as almas. Saber, sabê-los sob o meu microscópico olhar, eis tudo. Normalmente, afasto-me. Por algumas vezes, sei que fui loucamente amada, que os olhos de alguns me queimavam quando já fui quase bela e sei que os perturbava até à doença pela minha fingida distância de mulher que tudo vê, tudo percebe, tudo sente. Sentir de mais esgota, por vezes. Nunca pertenci, nunca pertencerei a esses. Eu sou uma outra coisa. Os tendentes ao assédio quase choram na minha frente e gostam da caça que pensam que me dão. Acabam sós, face ao ego que finjo ter. A verdade é muito mais subtil. Não é raro que eu use uma aliança, para que me deixem longe dos seus olhares de gula. Creio que tornarei esse uso crónico. Não conheço mais nenhuma mulher com tal frieza. Por isso, sei que eles podem, de facto, ser meus amigos para sempre, sem me desejarem o corpo nas suas camas mais do que algumas vezes, apesar de ter corpo e atitudes de quem nasceu para ser mãe e ser, dizem-me, uma amante de cortar as mais profundas respirações. O amor físico é quase perfeito, belíssima actividade para noites inteiras e de corpos que o são por inteiro mas sei-lhe o fim meramente biológico e reducionista em si mesmo. Não por decreto, mas por fases e até aos limites, é viagem que ninguém deveria deixar de fazer nesta vida, se possível tântrico e simples na sofisticação dos cérebros dos dois. Como o definiria? Utilizando o fabuloso termo culinário "q.b.": em doses homeopáticas... Na medida certa, entende-se porque tantos vivem em função dele: são vazios até ao infinito e jogam a lotaria que a biologia com eles jogou, espalhando os seus genes sem critério... A banalidade da média dos seres humanos sempre me entediou, de resto. Simplesmente banais. Tristes.
A verdade é só uma: nasci para ser fiel até à morte e sou-o, principalmente às mulheres dos homens que me cobiçam, porque me desgosta a simples ideia de fazer uma mulher que seja verter uma lágrima que seja. Assim, Deus me ajude: isso faz de mim a melhor amiga deles e delas. Deus é minha testemunha. O casamento é uma outra história: para mim, a privação dessa liberdade de ser a que sou, far-me-ia definhar. Por isso, a aliança de ouro me acompanha o finíssimo segundo dedo da mão esquerda. Porque sou fiel.
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