19.7.07

Ainda


há.


Na Clínica. Os "humores" entre o sanguíneo/bilioso/fleumático/nervoso levaram-me de novo à presença dos médicos. Que não, não estava doente. Nada a temer, portanto. Pensam que é problema de Psyké. Disse-lhes que talvez de Eros. Riso de circunstância.
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Entretanto, antes de novo departamento de triagem, "a" sala. Esperei. Na sala de esperar, esperei. Esperei, esperei. Sem almoço, devorava Fogo Negro, de Sansom. Olhei em volta.
Como um pássaro ferido, uma mulher da idade do mundo tremia em cadeira-de-rodas posta. Sem sossego. Suponho que não fosse Inês o seu nome. Cravejada de rugas, fechava olhos minúsculos em cansaço extremo. Magra como se do Biafra oriunda. A família, não sem a brusquidão dos insensíveis, encostou-a à lona da cadeira: "Assim, cansa-se menos...". Um talvez-bisneto ainda nos quatro anos deixava cair incessantes carrinhos-brinquedo, sobressaltando-a do sono de aparente quase-morte. Já nem era tristeza, aquilo. A lassidão de um corpo entregue de vez às tremuras e, no rosto, o rictus dos que sofrem. Cronicidade na dor. Um pássaro ferido, um pequeno, minúsculo destroço que a Deus não custaria levar ao colo, um dia próximo. Um pequenino pássaro. Talvez já nem os alimentos lhe soubessem, como aconteceu a minha avó, nos derradeiros dias... Imaginei-a com sede. Nada em volta a trazia ao acordo de si, excepto os brinquedos do rapaz batendo no solo a seco, sem que a imbecil família o impedisse de tão repetitiva cacofonia agressiva. Vacilava. O resto de mulher vacilava.
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Como um pássaro repugnado por ignominiosa espera, uma jovem impaciente, verde como um junco alçava a sobrancelha impertinente em poltrona de sala-de-espera posta. Desassossegada, também ela. Vivia a espera com tal intensidade que se lhe abriam narinas de sensitiva. Deslizava, ao recolher copos de água, ao passar entre salas, ao dirigir-se aos balcões de atendimento. Nem a mais ínfima sombra de homem de aspecto escravo afundado nas poltronas lhe era indiferente ao andar meneado, ao olhar altivo, à ausência de massa corporal, à visão perfilada de um corpo privado de ancas, de nádegas, de peito. Mas brutalmente feminina, a graça da árabe nos meneios ventrescos, os cabelos ondulados da deusa mediterrânica, o olhar entre o tecto e o chão da fêmea arrogante e da menina discreta, encimesmando-se, farta de mundo, elástica na fuga. Um magríssimo portento, um mau feitio acabado, uma leoa magrinha e magnífica. Tinha stamina, raiva, determinação dentro, via-se. Para espanto desta que aqui escreve, a bela criatura sentia! Vi-lhe o olhar percorrer a tristeza profunda, a indignação, a revolta e nova profunda dor: ela vibrava ao ver televisão - apesar da fingida indiferença - com a exploração de trabalho infantil na China, a represália sobre o esclavagista condenado à morte, a explosão em central nuclear, as declarações de ministro-pinóquio, a conversa sobre anorexias várias a nível de pensionistas-classe-trabalhista e bulimias a nível de classes de almirantes pré-reforma, dos que recebem complementos inexplicáveis, depois de tantas paradas com pernoita em hotéis de cinco estrelas com respectivas famílias e amigos, tudo para Estado-pagante... A menina-mulher reagia. A sobrancelha fazia-lhe justiça ao nível de indignação. Que diria Proust do seu porte, do seu rosto?...
Que diria Proust da velhinha? Também ela lhe recordaria "Grand-mère"; a menina-mulher seria uma "Albertine"? E a senhora de meia-idade adormecida à minha frente na sala-de-espera? E eu, entre elas, em que estádio do percurso me encontro? Serei, um dia, aquela mulher diáfana e magra que mal entreabria os olhos e se contorcia de dores a cada mudança de posição do corpo na cadeira-de-rodas?...
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Assim me interrompiam com doçura os pensamentos, falando-me ao rosto em delicada voz baixa: «Dona I., ainda não a chamámos, porque há um ligeiro problema informático. Dentro em breve, ouvirá o seu nome, sim?». Sorri à enfermeira porque, ao contrário da velhinha, não me contorciam dores; a senhora de meia-idade dormia, sem termo do sono à vista; outros conversavam baixinho; crianças passavam e pais orientavam-nas, sorrindo por terem público e por todos nós amarmos sempre muito todas as crianças. E... os velhos? Quem repara naquilo que será um destes dias? Quem se condói? Quem lhes sorri? Quem lhes fala ou toca com ternura, sem paternalismos ou "pena" na voz? Ternura da verdadeira, aquela mesma que usamos para com os pequenos?
A jovem de ar altivo condoeu-se. Ela percebeu. Olhou, discretamente, com profunda tristeza o destroço humano que virá a ser quando, um dia, nem beleza, nem saúde, nem um andar rápido lhe valerem e já não houver energia nem para colheres de sopa dadas por mão alheia, nem para indignações vindas do fundo da revolta pelas longas esperas. Eu fui testemunha. Ainda há alguma. Esperança, a tal que é verde. Como um junco, como a Irlanda, como um limão, como o amado Minho. Tudo o que é vivaz.
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Hoje acontece de novo, exactamente às 12:15. Um pequeno marco miliário nas horas da minha estrada.
Estarei mais afastada da adolescente; mais perto da mulher que, aos poucos, mansamente, fecha o ciclo. Será o trigésimo oitavo aro de tempo no tronco da árvore que sou. Hoje, abraço a minha mãe com mais força. Digo-lhe «Obrigada». Ainda há tempo. Ainda há esperança. Dizem-na verde. Talvez seja, ainda.

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