28.1.07

De sobras & lepismas

Sempre encarei os necessitados de simpatia como pessoas tendencialmente fracas e dignas de piedade. Não me refiro aqui à simpatia genuína, a que faz sorrir aos mais pequenos entre os humanos - as crianças - como eles próprios fazem entre iguais; aos vizinhos que dificultem vidas por não cumprirem normas de bom comportamento; à vendedora que, no supermercado, tenta empurrar-nos mais uma boneca de trapos que simbolize nova "causa" digna da simpatia social; ao idoso ou doente oncológico a quem a vida fez os movimentos mais brandos, lentos, lentos de mais para nós, os que, na flor da idade, têm energias aparentemente inesgotáveis e conduzem e conduzem-se com pressa, sempre muita pressa. Fascina-me a estupidez crassa de quem se julgue interessante porque a esse nível põe os supostos amigos. Se os seus forem melhores do que os nossos, sentem-se no topo da espumosa imundície comunal. Falácia: também Salieri privou com Mozart; Napoleão deve ter estado rodeado de escumalha; qualquer anónimo pode ser a nata da cultura de um país sem que, para tal, tenha tido de partilhar cama e/ou mesa (nos seus sentidos possíveis) com quem, supostamente tenha um nome. Há, de facto, muitas formas de prostituição. Neste naco de terra a que muito pretensiosamente se chama país, impera um bando de parasitas: aqueles que, habituados ao saque de tudo o que possa luzir, de tudo são capazes, em frágil tentiva de aprovação. A isso, não chamo simpatia. Quando há segundo objectivo, sempre que há como fito aparecer, ter nome - seja para receber sorrisos, aplausos ou meros imundos proventos - não se chama a isso simpatia. Quando muito, aplique-se-lhe o termo sympathy. Dar os pêsames, apresentar condolências a tal sorte de ignaros é o mínimo, o máximo, o pior que se pode fazer-lhes, porque o Tempo não é cego. Não é cego quem nos cerca e quem se vende só passa esta mensagem: prostitui-se. Sejam quais forem os ganhos, serão sempre um insulto: à suposta inteligência dos profissionais da adulação, aos supostos amigos melhores, a todos os que, supostamente não entrem nesse círculo tóxico. Grandes escritores descreveram essa náusea que prevalece como fundo neste povo. É mínimo, poltrão, risível um povo que se empurra em busca de apoio e se trai a si mesmo sempre que, necessitado de aprovação, se soergue nos bicos de pés menos imundos do que a suposta alma que traz dentro. Será, talvez, da minha formação gnóstica, mas se eu tiver que vender-me um dia (vender a alma, porque antes de mais cometeria, com toda a naturalidade, hara kiri) antes, muito antes, terei comido, perante Deus, o pó do chão. É preferível comer terra do que vender o que se é em nome de um único aplauso. Porque antes, muito, muito, muito antes do bíblico lugar-comum «Vaidade, tudo é vaidade», há uma outra vertente do real que ultrapassa o pó: há os bichos da terra, os que comem o pó dos livros de todas as bibliotecas do mundo e há, em nós, mais de finitude do que de eterno. Em última análise - brilhe ou não em nós a divina centelha que nos traga a luz de dentro dos olhos quando usamos bem e da verdadeira simpatia - há um lugar que visito todas as semanas e onde restam sobras. Aconselho muitos a passagens por lá, para que se lhes ponha em perspectiva o caminho a palmilhar. Ali há silêncio, despojamento obrigatório, não se agrupam os nomes por cunhas. Ali, cada um é o que é, o que sempre foi, dali, daquilo, não se passa adiante. Ali, até as flores mais frescas são alvo da caducidade e pouco mais tempo duram do que a chama de uma pacífica, despojada vela. Ali são as sobras das sobras das sombras: chama-se cemitério.

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