19.11.06

Povo Pequenino

Audrey Hepburn, enquanto Embaixadora da Unicef


Andam por todo o lado. Observam-nos de planos inferiores, olhos poderosos. Se temos de mostrar-lhes o mundo real que - mau grado o sofrimento dos mais sensíveis de entre nós - será o legado das mais novas gerações às seguintes, hesitamos, vergonha perante imperfeita obra. O que melhorámos nos mares, na terra, no ar? Que rios lhes deixamos, que tolerância, que filosofias, que Deus, que percentagens de ternura e perante o quê? Há heróis que os iluminem sem serem de material plástico e nas cores que a América standardizou? Durante a mais tenra adolescência, ao ver os noticiários disse vezes sem conta aos meus pais angustiados que se era esse o mundo que me legavam - horrendas imagens endémicas de fome em África, atentados no Oriente, Klu Klux Klan no Sul dos E.U., fascismos, comunismo, ódios religiosos, suicídios em massa, gerações perdidas para as drogas - preferia ter nascido cega, surda e muda. Para não saber. Agora sei. Sei que há males que nunca poderia apagar dos dias de milhares de crianças, por mais válida que fosse a minha imagem pública. Quando pego num dos meus três sobrinhos no colo, envolvo-o na ternura que merece qualquer criança e penso em todos os que nunca terão um peito morno onde encostar-se, um voz que lhes serene as mágoas, uma mão cálida que lhes leve às bocas a comida, a bebida, lhes limpe os olhos húmidos das mágoas, lhes acompanhe o riso perante cabriolas, caretas e frases-chave dos seus filmes e músicas favoritos. Aquilo que já fomos será, eternamente, a estação da vida onde param milhões enquanto nos despedimos da Terra. Ocuparemos assim tanto de ego que já nem sorrisos nos sobrem para quem nada pede em troca?




Por tudo o que suscite a palavra infância, e porque hoje se celebrou importante data relativa à melhor ONG do planeta, recorde-se que dois países ainda não assinaram a Convenção dos Direitos da Criança: Somália e... Estados Unidos. Pudessem as cores festivas dos postais e prendas UNICEF ser as do quotidiano de milhões de anjos que caminham entre nós pedindo apenas uma oportunidade de sobrevivência.




No que me diz respeito, sem ser submissa sou reverente perante qualquer criança que me olhe nos olhos até aos seus fundos. Não é um pequeno anónimo, aquele que me invoca empatia, sorrisos profundos, palavras meigas, inclinação do tronco até ao alcance do seu beijo redondo e generoso até à humidade costumeira. Cada criança será inequivocamente - e sem sombra de ofensa ao budismo que amo e trago guardado na alma para sempre - um kundun aos meus olhos. Porque desde que saí desse país, procuro-o como quem se perdeu de casa. Procurando angariar infância enquanto o mundo se precipita ao meu lado, movo-me na mesma câmara lenta do Tai-Chi de todos os dias. Faço minhas as palavras de um mestre que admiro: «Sei, porque mo revelastes (Senhor), que neste mundo somos todos, de certo modo, iguais: os nossos corações só encontram descanso quando repousam em vós».




Santo Agostinho sabia desse regresso a casa: angariar infância é repousar nos braços do Pai. Confiar.


.Beijos acriançados.

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