14.7.06

A História cumpre-se

A Douce France celebra a sua "Fête Nationale, le quatorze juillet". Enquanto uma das mais fabulosas histórias nacionais se escrevia, a cidade fervilhava, esboçavam-se alguns dos princípios que os responsáveis máximos pela Révolution a nível teórico conseguiam gizar, a despeito da fúria dos sans culottes que, em ânsias, não esperaram princípios norteadores para se lançarem na Prise de la Bastille. É assim a vontade colectiva: sem leis que não as da urgência de mudança. Rolam cabeças, desconstroem-se cidades, esventra-se o instituído, na convulsão de que tudo está mal e tudo deve ser recomeçado.
Entretanto, noutro lugar do planeta, a guerra quase oficial, a que sempre existiu sem a terem assumido vai desintegrando vidas há muito em precário equilíbrio. Duvido que o mundo aprenda muito com o conflito israelo-árabe. Pelo menos, não se trata das vontades de quase todos. Há, naqueles nichos de arremesso de pedras uma fúria incontida, um ódio desde as infâncias treinadas para a servidão de interesses de cabecilhas com poder a mais que, não obstante as imagens que o mundo visiona, não serão um retrato tão globalizante da realidade como isso. Não acredito que o sejam. Deve haver milhares absolutamente fartos, esgotados, centrados no Deus que os dois lados tanto invocam. Silentes, contemplativos, esperam pelo dia certo para agradecerem a Paz de que tantos fazem um podre festival de arremesso de direitos e obrigações. Analiso frequentemente a história através dos olhos da personagem que não sou ainda: mater dolorosa.
Preocupam-me as mães, todas as que não sairão à rua como as mães francesas exigindo pão para os filhos. Mães de soldados, de miúdos arremessadores de pedras, futuros "casualties of war", depois transportados em ombros dentro de caixas de madeira branca, féretros-metáfora do que são territórios sob o ferrete da maldição. Até (ou sobretudo) como cadáveres, úteis à propaganda. Ali, não há curas. Há milhares de mães que - ao longo de um período suficientemente longo para preencher a minha memória histórica - bradam aos céus desde que me conheço. Tal como as da geração antes. E as que virão. Centrando a minha atenção nelas, relembro a outra parte, a dos que a elas são subtraídos: os filhos, todos eles, independentemente do lado da ofensiva. Tal como a pobreza endémica de África, não vejo aquela parte do Oriente sem mãos sobre cabeças com véu islâmico ou sepulturas hebraicas com pedras depostas em homenagem. Alguns dos mais acérrimos defensores da existência de um Deus com dois nomes diferentes são provas viventes de que, se ele existe, há muito voltou o rosto às plantações fétidas de cadáveres.
Então, penso nas fotografias de infância. Sei de muitos que entraram em incêndios em desespero pela recuperação aquilo que ninguém nos devolve: as imagens de vivos e mortos - ainda ontem uma portuguesa nos territórios sob ataque de bombas referia ter reentrado em casa para salvar as fotos de família -,como se um legado inteiro, depois de tudo perdido, perdurasse em fotos de família.
Perdura. Sei que a ternura está inteira nas imagens em que a família me pegava ao colo. Nas das crianças que fomos. Nas dos meus três sobrinhos pequenos. Nas minhas com eles. Nas de baptismo, de aniversários, de férias, de brincadeiras na praia. Naquelas em que abraçava o meu irmão, sorria à minha mãe, me sentava, confiante, no colo do meu pai. Perdura nas imagens dos meus avós, nas do cão da mais tenra infância, companheiro fiel, terno, morno, olhos pacíficos que nunca esquecerei, companheiro de aventuras e corridas, testemunha de choros a sós. Todas as imagens de gente amiga a quem se quer como a irmãos. Todas as fotos onde os sorrisos testemunhem a felicidade da partilha de bons momentos.
Volto a uma das minhas verdades de sempre. Uma daquelas que me provam que Deus existe. Das que me reconfortam, que afastam de mim os preconceitos e que, em última análise, me mostram a razão, mesmo se ela é a dos sentimentos. A mais forte de todas. Independentemente do lado onde nos entrincheiremos, todos somos a mesma massa informe e voltaremos a ela. Mesmo sangue, mesmo sal no choro, mesmos risos iluminados, as mesmas fotos de infância, sonhos iguais. Todos nós já fomos bebés aos colo da mãe.
Não há qualquer diferença - digna de nota - entre nós, nascidos trémulos e sujos; mortos um destes dias - mal se cumpra o nosso tempo - em dores, cama de escaras ou em automóvel parado à força. Espera-nos o esquecimento. Como aos de Srebrenica, aos de Auschwitz, a todos os anónimos que o pó consiga recobrir. A nós sobreviverão as fotos, algures num sotão, até que ninguém mais tenha memória de quem fomos. Talvez um nome errático numa conversa de família daqui a 60, 100, 200 anos. A despeito de quem formos, a Paz da dissolução há-de chegar. Connosco ou sem nós, a História há-de cumprir-se. Valemos o nada da nossa condição de pó. Finitude. Sagrada, esmagadora, abençoada finitude.

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