Meia-idade. Esteve em festa de família. Já mostrava os fastios de quem visitara, de urgência, o hospital havia dias. Más digestões. Percebi - por ter estado frente ao seu lugar na mesa - que aquela pessoa não mexeria hesitantemente com o garfo, como à procura de menos letal pedaço de alimento. Senti que aquilo era um sinal e disse aos mais íntimos que era mais grave do que se admitia. Notei-lhe os olhos baços fincados na mesa, o desalento de um dar aos ombros que não lhe correspondia. Um dos seus prazeres, o da mesa, esvaía-se agora no esforço para mostrar sorrisos. Foram as suas últimas fotos. De 25 a 21, apagou-se: emergência, hospital dia e noite, incógnitas quanto a diagnóstico. Não chegaram a levar-lhe o terço, seu amigo fiel que, sugeri, lhe confortaria as noites de conversas em devotas melopeias com Deus. Em menos de um mês, extinguia-se. A causa é a que mais me dá que pensar e me traz anseios de novas descobertas a nível científico: cancro. O insidioso amigo do silêncio. O silêncio sem retorno. Tinha 52 anos, filhos e netos. Agora, ele chora por ela em silêncio, quando crê que os filhos não vêem. Ainda não acredito que ela - agora do lado bom do silêncio, aguardando o nosso esquecimento e o que o tempo sobre todas as coisas lança - já sabe a verdade que a todos ainda intriga, Deste Lado.
Porque corremos tanto sobre a Terra? À luz disto, mais ridícula ainda me parece a vaidade, mero engano. Putrefacta, como um corpo antes vivo que se devolve ao pó. A vaidade, a par com a hipocrisia, a pobre e, talvez, maltrapilhamente legítima necessidade de aprovação, é a maior prova que conheço de menoridade. É a larva que nunca será crisálida. Apouca. Tolhe. Coalha o fluido das provas diárias da existência de uma espinha dorsal. Pedir - como Salomão - ao Pai a redução a pó de tudo o que em nós seja verminoso e ofuscante. A vaidade não é útil; é o oposto da produtividade; é a negação da nesga de luz divina em nós, a primordial centelha que nos torna válidos, genuínos, aptos, frontais e dignos. Faz claudicar e cega. Aproxima, antes do tempo certo, a nossa condição da dos ácaros, dos bichos que se movem sob a terra. A vaidade opõe-se ao húmus e, estranhamente, aproxima dele o nosso corpo, mera embalagem sem outro objectivo que não seja transportar-nos sobre o mundo a etérea alma. Assim viajamos, mãos trémulas na morte como na infância, olhando em volta, distraídos da única coisa que realmente importa: a aceitação do pó que somos em germe. Talvez poeira de estrelas, mas tão-somente vísceras, osso, pele, nervos. Espírito enovelado em fios de teia: ectoplasma que urge. Nó górdio em fios deslaçados. Tempo e esquecimento. O nada que urge largar o lastro a que chamam vida.
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