25.6.06

Da disparidade de critérios ou da ternura, talvez... Ou saudades do futuro.

Azimutes. Anoitece. O sol deixa-se intimidar por mais um fim-de-tarde de orvalhadas. As gaivotas mais desafiadoras do cortante vento-norte esboçam ainda ensaios de voos rasantes à água, cientes, talvez, na sua envergadura de asas, de um dia a menos pertencendo ao céu. Tal como descemos nós do corpo da mãe em brusco movimento e desceremos, mais dia, menos dia, à terra, assim as gaivotas serão, definitivamente, do chão. Agonizantes, hão-de abrir as asas até que as não movam mais nos movimentos que Da Vinci adivinhava nos seus esboços. Ave consciente da sua finitude, corro, sem desesperos, contra o meu tempo que me esbate contornos do rosto e me marca de indeléveis linhas, ora de sorrisos, ora de apreensão, um rosto - contudo - estranhamente ameninado. Sempre apreensivo, estranhamente ameninado. Sorvo os restos do dia. Dou Graças e indigno-me.
(...)
Leio Céline e Yourcenar: do primeiro, Vão Navios Cheios de Fantasmas; da segunda, Memórias de Adriano. Tento perceber o legado desta Europa e as suas contradições. Ontem, soube que nos retiram (arrancam do peito?) mais uma parcela da identidade nacional... Siderada, perguntei ontem: até o vinho do Porto?... Que teremos de nosso nesta Europa-decapante? Que sentido faz isto?... Espero por novas informações e indigno-me: e a isto, não erguerão os portugueses a indignação, na era da bandeirola em cada esquina, do mesquinho orgulho-pátrio, da suposta identidade agigantada? Onde estão quando é preciso dizer "basta"?...
(...)
Num rescaldo de ano lectivo pleno de vagas alterosas, saboreio esta bonança. Hoje, houve alvorada pelas sete. Deixei a minha mãe numa igreja, cuidei eu da sepultura da matriarca: jarra lavada, o vidro cantando-me entre os dedos ainda infantis - os mesmos que a minha avó segurava a caminho do colégio - flores frescas - sempre, sempre os crisântemos, as margaridas brancas -, novas velas que acendo, as sobras recolhidas, olho em volta. Ali ficarei eu, um dia. Aquele espaço é, realmente, o campo-santo... A paz ali respirada sobra-me para tantos dias de mágoas! De todas as vezes que lá passo, a conclusão-maior: assim será, isto nos sobrará um dia. Sem mágoas, ser-se chão por cumprir. Serenidade. Foi há quase um ano que a perdemos. Só aos 36 perdi alguém realmente próximo. As roupas negras aliviam-se e, como sempre, recordo dela o que me faz sorrir com suavidade e não o menos bom, mas compreendo isso que tantos dizem de "perder-se partes da alma". Algo se parte, algo se acende. Mais uma vez, a alma serve-se dos teoremas científicos para reconhecer o seu lugar: tudo se transforma. Nada é em vão. Sorrio, quando penso na inabalável crença: nada é por acaso. Tudo caminha para a plenitude da morte.
Saída da igreja, ela surpreendeu-se que, mais uma vez, eu tivesse feito a tarefa das duas. Agradeceu. Gostou da disposição dada às flores. Dois ramos em harmonia. Foi, por sua vez, falar com a mãe que nunca mais verá. Eu, esperando no carro, planeava há dias não deixar de aproveitar a frescura da manhã para um passeio curtinho por entre os campos, subindo à montanha, mostrando as novidades nos arranjos camarários de Azimutes. Assim, agarrando os momentos em que aquela a que chamo mãe é só minha e repousa dos milhentos cansaços, agarro a felicidade pequena-e-suprema dos momentos perfeitos do dia. A minha mãe merece o céu! Passeamos, elogiamos casas, jardins, congratulamo-nos com a estética que a cidade e os seus arredores adquirem, com os equipamentos que facilitam vidas, com os praticantes de BTT e de corridas pelos caminhos secundários, as crianças que, a caminho de igrejas, levam flores aos que já não vivem, com a brisa que nos agita os cabelos, o cheiro do verde dos campos das nossas infâncias. Em paz com o mundo, saboreiam-se café caseiro, pão ainda morno, aromática manteiga. Fazem-se planos para a semana, conjugam-se horários...
Gostaria de pedir a Deus para não ver o dia em que a minha mãe deixe de ser tocável e exista só dentro do meu peito. Espero saber transportar o seu legado, a sua granítica honra e dignidade em tudo. A sua capacidade para os silêncios das esperas. Aprendi com ela a esperar pela curva seguinte da estrada sem que o desespero me acosse. Só não aplico ainda bem o seu conselho-maior: o melhor é sempre o que fica por dizer. Creio ter mais quente o sangue... Sei que é assim que ela me aceita, que é deste meu ácido mau-feitio-a-puxar-à-gargalhada, à zanga seguida de cantorias... Rimos as duas: ela, das minhas diatribes; eu, da minha audácia para saltar em vez de cair sempre que a vida lança rasteiras-de-pôr-à-prova. Persistência. Crença cega nos melhores dias. Riso ao canto dos lábios. De alguma forma, gostaria de a carregar no meu colo para que mais nenhum mal lhe assalte as noites, mais nenhum medo da morte lhe ensombre os dias, mais nenhuma dor lhe invada o corpo. O corpo de onde vim eu. O meu ninho, a minha matriz, a prova - a mais profundamente cravada certeza do meu peito - de que há, de facto, um Deus, algures.
.Deixo beijos pequenos,
cheirando à frescura matinal dos campos de todas as infâncias.

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