5.5.06

Vida(s) curta(s)

Alguém - por quem nutro especial apreço - dizia, há dias, da facilidade que há na destruição. É mais fácil mandar calar um aluno do que ouvir aquilo que ele quer dizer, principalmente se a despropósito; é infinitamente mais acessível a uma mente mediana compreender o acto de contrariar, da calúnia ou da vingança, do que um gesto de humildade, de compreensão ou de menorização do mal sentido na pele. Conheço gente que trabalha em lojas e empresas e que, ocupando lugares de algum poder é alvo de cobiças crónicas. Tem de regenerar-se, a cada noite, pela força das orações, porque a fauna circundante olha com esgares de rancor, inventa simpatias que não sente, intriga, mente, furta para prejudicar.
Por vezes, pergunto-me que lugar é este onde me calhou nascer e se a palavra "selva" não é suave para descrever os actos dos humanóides. Apercebo-me cada vez mais de como pode ser vil e pestilencial a natureza humana. Soçobro, quando sei de diatribes várias, de frases ditas, de actos cometidos, de gravíssimas omissões no que respeita àquele que convencionou chamar-se "o próximo". Em volta, quase sempre o que é tóxico. O ser humano é tóxico: por isso são tóxicos os jornais, a televisão, a internet. Insistindo no que me cerca ultimamente, volto a meditar na doentia necessidade de aprovação da maioria dos chamados líderes de opinião... No mundo blogger noto um desespero dos recém-chegados (newcomers) em agregar simpatizantes, alterar horas para figurar sempre no topo de listas, agitar bandeiras do bem feito aos outros, expor-se ao nível da quase-radioactividade. Quase se antevê a congestão. Sempre que conheci líderes percebi que são gente fortíssima, empenhada no culto do eu, encimesmada nos seus quotidianos aparentemente inigualáveis pelo interesse e nos seus altamente imitáveis estilos de vida. Tóxicos. Sempre que precisamos de modelos, entramos no mundo da toxicidade. Não refiro aqui a oposição ao sonho de assemelhar-se a quem se considere mais seguro, mais completo, muito mais feliz, mas sim à negação daquilo que há de diferente em cada um. Cada pessoa traz, quando nasce, um potencial contributo para a diferença. Cada um deveria fazer um percurso unívoco, convicto. Noto isso nos meus alunos: os adolescentes - embora imitando nas modas mais fugazes os seus modelos - são suficientemente orgulhosos para acreditarem que eles sim, eles vão "fazer a diferença". Imaginam-se em carreiras que sabemos sem futuro por cá e é preciso muito tacto para explicar-lhes: um biólogo marinho não seguirá, com certeza, o percurso completo neste país; uma cantora ou actriz terá de sujeitar-se a duras provas para singrar numa república demasiadamente pequena em tudo, na qual o provincianismo reconhecerá, necessariamente, os talentos menores e esmagará os mais ambiciosos e perfeitos porque o "factor C" tem o poder da antiguidade; um futebolista terá de presenciar as visitas dos progenitores mais endinheirados ao balneário, onde o treinador será forçosamente convencido de que as crianças que merecem uma oportunidade são as que pagam para tal... O talento é um mau presságio no país. Por isso lhes digo sempre que saiam por uns tempos: a Europa tem as fronteiras abertas e os cursos, os estágios, os primeiros tempos (ou mesmo toda a vida) numa profissão deveriam passar por outas línguas, outras mentalidades, outros horizontes. Quem não está bem, muda-se. Por isso não entendo o medo das diferenças, das viagens, dos riscos de estar à margem do rebanho.
Sempre me cansou o cinzentismo das modas. O contrasenso é as modas não serem "diferentes". Colorido é aquele que caminha a sós. Por sua conta e risco, verá sempre o que não vê quem pensa pelas mentes alheias. Verá os desertos e o resto do mundo pelos melhores motivos e não com o enjoo dos que seguem as modas e vão aos lugares em rotina peregrinatória. Por isso, ainda pelas modas, a maldade humana fica gravada na memória colectiva e é contraproducente. Como é contraproducente escrever sobre ela. Inteligente é escrever sobre o bem que outos praticam, mesmo que as personagens tenham o nosso corpo e as nossas mãos. Ninguém deve saber. A piada está em que ninguém saiba que fomos nós os agentes de mudanças nas vidas de outros. Também esse poder é uma forma de soberba, mas uma infinitamente mais pequena do que a de promover-se como a um produto de consumo de massas. A vida é demasiado curta para que se perca tempo com ídolos. A beleza da existência sempre esteve na variedade de escolhas. O mal é tacanho por natureza, mesquinho por definição, de curta extensão na história da humanidade. Construir é mais criativo; a originalidade ilumina; seguir modas tolhe os movimentos. Por isso me custa agradecer a quem, ao longo da vida, me tenha feito elogios. Nunca se tratou de falsa modéstia - sei tudo o que valho e melhor ainda do que nunca serei capaz -, mas algo tolhe quem recebe glórias imerecidas. Não antes da chegada a lugar seguro. Não antes da mais pequena meta atingida.
Os vencedores que conheci não levavam lastro. Os mais inteligentes não foram os de vidas cheias mas sim os que se afastavam para melhor meditar. A suprema glória não é o reconhecimento: é o silêncio. Quando fui esmagada pela beleza ou pelo horror, guardei o meu silêncio. Na minha vida, a ausência dos aplausos (a mim ou a outros) coroam os melhores momentos. Recordo um episódio: por mais defeitos que tenha o meu pai, hei-de sempre vê-lo reparar no que o cercava, acocorar-se e apertar os atacadores a um velho de bengala na estação dos comboios. Um desconhecido que já entrevia a morte e não poderia mover-se muito além de erráticos passos, agradeceu-lhe em silêncio. Percebi em silêncio que o meu pai era um ser humano excepcional pela sua sensibilidade, um Wang-Fô como o de Yourcenar. A humildade dispensa palavras. Fala no silêncio. A eloquência do silêncio de que me fala, por vezes, um homem excepcional.
Ainda bem que todos morreremos um dia e não foram a popularidade, os aplausos e a inveja que criaram as mais belas obras da Humanidade. Há originalidade no silêncio e ele nunca será uma moda. Há muito mais criatividade na bondade do que na mesquinhez. Imagino que o silêncio seja, aí também, um factor preponderante. Um olhar de aprovação de um terrível mestre, parco em elogios, vale muito, esmagadoramente mais do que o aplauso de uma multidão: os aplausos não nos fazem aperfeiçoar e são a prova de uma meta atingida, um comportamente a repetir, uma fórmula que colou; o silêncio dos treinos e dos ensaios, os choros das falhas são infinitamente mais próximos de Deus. Por isso nunca ninguém igualará aquele que procura na ancestral sabedoria oriental o seu caminho. Por isso nunca ninguém igualará Pascal Quignard, avesso às modas e viajando a sós. Por isso o silêncio e o afastamento do mundo são sinónimos de busca.
Admirando os divertidos que me façam sorrir, os seguros de si que dão luta, os triunfadores políticos aos olhos da comunidade, os empreendedores-natos que atingem as suas metas em bens terrenos, não consigo deixar de pensar que as suas vidas têm a maior lacuna: é pelos piores motivos que os homens de hoje apostam na ambição pelo reconhecimento público. Aquilo que encontram não os aproxima de quem são, não lhes coloca questões filosóficas ou sequer espirituais. Não cabe, enfim, num nanosegundo do silêncio de quem tem dúvidas. Quaisquer dúvidas. Ter dúvidas é (ainda) estar a caminho.

1 comentário:

lobices disse...

...citando:
"Ter dúvidas é (ainda) estar a caminho."
...eu atrever-me-ia a dizer que ter dúvidas é estar a caminho da próxima dúvida
...se ela não existisse e não subsistisse em contínuo, não "caminharíamos"
:)*