6.5.06

Matriz

O sol estreita-te a garganta. Debates-te por entre as folhas. O sabor a sal acicata-te a língua que pede ajuda. Há quanto tempo, já? Tudo isto te é novo: ao corpo na sua parte mais larga, ao espírito na sua parte mais nefasta, aos sentidos, parte do todo. Arbustos: as mãos pequenas seguram com força e seguram-se em simultâneo. À tua volta, apenas o vazio da tarde. A voz que te ecoa dentro. A lassidão da mornaceira do meio do dia, os seus demónios em legiões fazem-te subir a sede. De ti, a saída toda em líquidos. Ondulam-te as ilhargas, é a um debater guerreiro que assiste a natureza serena toda em cítricos verdes. A pele macia do rosto amarrota-se em pergaminho, os olhos pregam-se a cada novo arranque, as pálpebras cobertas de salitre distendem-se a espaços. Suportas a insuportável dor. Resvala-te o centro em direcção à terra onde os pés fincam as fraquezas aquilianas, a terra molhada dá-te os tons de chocolate amargo. Não queres o lugar, o momento, não queres tomar parte desta encenação onde te expias em nome de actos falhados. No pouco de raciocínio em que o corpo dá trégua à mente, resolves arrastar daí aquilo que és. Talvez o caminho te fosse fácil, talvez as pernas coladas se resolvessem a cooperar, os braços te enlaçassem o ventre deslassado. Abandonas o solo rodando o corpo lateralmente, a tua mão que se apoia para soerguer o tronco. As aguilhoadas no teu cerne certificam-te de que é esta a derradeira tentativa. A única e incompleta. Ficas, choras, imploras ao Alto um fim a breve trecho. Deus retirou-se, por certo, para algum hospital, um qualquer país em guerra ou julgamento de almas menores. A essa tarde preside apenas o silêncio que o restolhar de folhas corta. E contudo, no ar há limões, erva-doce, cheira a prado com árvores de glabras folhas. Colam-se-te à face os cabelos que nessa manhã lavaras a custo. Não há roupas que te sustentem o corpo que sai de si. Em estertores, orando a deuses nos quais não acreditas, ranges dentes semi-preciosos, adentras de mãos a âncora que te prende à lama: as tuas ancas entregam-se ao sinuoso movimento dos desesperados. Respiras a custo. Acima de ti, o canto dos pássaros, um quase-desdém da flora, a serenidade que não te é proveitosa. Sentes a angústia dos que não optaram pela cidade grande, tudo tão longe de ti... Transportados ao alto da paisagem, talvez os gritos te tragam gente que passe perto. De maxilas em cãimbras, mãos em nós com brancos, dedos retorcidos, pés fincados em luras que te escava o desespero, a dor mobiliza-te o instinto de sobrevivência. Num último excruciante laivo de furiosa loucura, rasgas ao alto as roupas, choras de desespero. Não há ali cinzas que te cubram a cabeça, a cerimónia é sem testemunhas, o teu perdão não é tão fácil. Debate-se o corpo, nauseiam-te os teus odores, o espírito soçobra. Como barco que desiste, adernas enfim sem margens à vista. De lado, o corpo distende-se, já não te é audível o último grito rouco que a boca grita a despeito de ti. Por entre as tuas pernas, escorrido, descente o sentido, alagam-se os líquidos e, por entre eles, o corpo róseo da carne a que deste forma. Em gemidos dolorosos, entrou no mundo mais um desses que um dia há-de morrer - soando-lhe a hora certa - entre odores, quedo ou brutal, sentinela de outras vidas, anjo ou quiçá algoz, em dores ou em paz de sono. A tarde corta-se agora com os teus olhos - abertos de desmaio breve - de intenso verde inquisidor, sentidos alerta, corpo desperto e livre, um nicho na lama, uma corda e um porto. Rasga de dentes o abrigo que foste, dá o nó górdio no ventre que do teu saíu, toma nos braços o teu património. O bando de pássaros em revoada anuncia nos prados que te nasceu um filho. Não há sinos a rebate: é mais subtil o grito de um pássaro que, aturdido, transforme em som o cheiro de uma nova vida em corpo que freme. Diz adeus ao pó: por hoje, as pazes estão feitas e recomeça-te a vida em novo ciclo matricial. Alguma vez tiveste esta acuidade? Há quanto tempo não sentias os sons da vida? Voltaste a casa. Voltaste a casa.
(...)

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