10.3.06

Substituição




Ao entrar, F. trazia ódio aceso nos olhos. Contrariedades de quem prefere "hora livre". Também eu estou ali gratuitamente e aceito. Peço-lhe que retire o boné. Acede, olhando de lado, esquivo, como se fosse eu atacá-lo, ou ele a mim.
Poucas vezes vi um adolescente tão perturbado e violento. Olhar esgazeado, tem a simultânea posição de ataque e da retracção de quem não é feliz. Prepara-se para me cabecear no queixo, estou certa. Pergunto-lhe porque não me olha nos olhos quando lhe falo. Diz que não quer saber. A seu tempo, sofri as consequências de ter dominado a pior turma da escola, as de sempre para um professor. Sem comentários. Deus estava comigo. Um sétimo ano...
Fechados por uns minutos por não terem respeitado as normas (a sala deve ficar impecável e as desculpas pedidas a quem de direito: "Isto é uma substituição, não é uma aula, não nos pode obrigar, não é nossa stôra"...), nem o mais alto - muito maior do que eu - se atreveu a desafiar-me e ir buscar a chave que coloquei sobre a minha mesa, segurando neles o meu olhar de afronta. Fiz puro bluff, a cabeça a estourar de dor, tremendo como se estivesse num barco frente ao vendaval, peito aberto à balas, vulnerável como uma mulher a ponto de quebrar. Sustive a minha razão, como quem segura o mastro já partido que mal norteia a vela ao barco. Deus esteve comigo. A minha voz foi inflexível. Eles rosnam, insultam-se, falam altíssimo. "Você é má!", a inocência na frase que não se espera de rufias sem pejo das piores grosserias. Percebo como funcionam. No quadro, escrevi-lhes o meu nome a pedido: "Inês, a Má". Riem. Seguro o giz que esmago entre os dedos, respiração controlada a custo, atordoamento. Como nos piores momentos da vida, um aparente sangue-frio que gela tudo em volta. Por dentro, partida como numa violação de privacidade, dignidade, feminilidade ultrajada. Estou à mercê. Falo com Deus: «Ajuda-me Tu! É hoje que quebro...» Pernas que me tremem como as de Freddy Mercury em palco, retesadas pelos piores motivos. Um lince enfrenta uma alcateia esfomeada. Tempo. "Queremos sair!" Não. Não antes de pedirem desculpa: «Sou, neste momento a vossa professora, represento a ordem, sou eu o adulto aqui, serei respeitada, sou uma senhora, poderia ser a vossa mãe. Há limites: as desculpas, por favor... ou não há almoço..." Falo cada vez mais baixo, cravo cada vez mais os olhos. Ou respeitam e reconhecem ou da próxima serei feita em picado... A dada altura, a fome, a pressa do transporte apertam com os rapazes. Aceito o coro: "Desculpe, pronto! Agora abra a porta, já!" Saída.
As consequências do dia seguinte foram resolvidas no dia seguinte. A energia regressa-me aos poucos. Lívida, percebo porque pode um professor parecer mais velho ou parecer ter a idade que tem: nunca parecerá mais novo. Profissão de risco, dizem-me as artérias coronárias, diz-me o peito, dizem-me as dores de parto de quase, quase ter sido cilindrada. Valeu-me a força de um carácter de aço, nervos inoxidáveis, quase, quase inoxidáveis... Valeu-me Deus.
Estes dias, de novo no corredor, a caminho da sala do 7º X: "Ooooooooooooh, pá, é "ela" que vem substituir, Inês A Má! Fooogo, que azar! Logo ela".
Cansativa, arrasadora, esgotante até ao paroxismo, a aula de substituição com o 7º X será sempre uma brutal medição de forças. É embater num penedo de granito. Faço-me granito igual: cada um receberá na medida em que der.
O rapaz esgazeado, F., não gosta quando lhe falo de um amigo dread que muito admira em termos comparativos - um adorável aluno meu, D., que conquistei pelo elogio e a serenidade para o relativo sucesso, uma adorável criatura com falsa "pinta marada e janada" a que não me importaria de chamar meu filho.
F. irrita-se, quase me desrespeita quando pergunto se gosta do seu amigo D. como eu e o que pensaria D. se o visse comportar-se assim comigo. Tento associar-nos, porque sei que o outro é um modelo que quer seguir, já os vi nos corredores, no BTT, estudei-os de longe.
Toco-lhe no braço que escreve e que afasta com violência, convenço-o a passar o que escrevi no quadro, a melhorar a letra, a olhar-me nos olhos quando lhe falo, faço-lhe um elogio (Senhor, Pai, esgoto-me, apetece-me odiar este bandalho inútil... Ah, que vontade de lhe bater para que perceba que eu TENHO DIGNIDADE e que me esgoto...que me esgoto com ele quando outros se insubordinam... Ah, como seria fácil o ódio, Pai da Vida! E o barulho! As minhas aulas NUNCA têm barulho! Esta turma é a minha prova de fogo: quem suporta "estes", suporta tudo. São o meu Vietname... Pai, segura-me ao colo que caio de dor, dói-me por dentro, agonizo, oh, fúria, como és fácil...).
O rapaz olha-me nos olhos. Aceita a folha que lhe dou: recusara a branca, precisava de linhas; aceita a esferográfica verde-alface que he dei: recusara a pilot 0,4 preta, "muito fina, não gosto!". A verde é igualzinha à sua mochila, aos ténis e ao boné, fluorescente até me doerem os olhos... De repente, brilham os dele: como uma criança pequena que descobriu um novo brinquedo, olha para as cores, esboça um sorriso... Eu pasmo! Resultou. A "pedra" amolece, enfim... Digo-lhe que se passar o que está no quadro, não farei a "Participação Disciplinar" à Directora de Turma. Quando a aula termina, antes que eu lhe possa oferecer a esferográfica verde, pede-ma, um menino encantador (só pode ser outro ou ter dupla personalidade), sorriso de orelha a orelha, rindo para o fundo dos meus olhos. Pasmo... Que sim, que lha ofereço com gosto! Saltita, feliz, com novo brinquedo "Obrigada, stôra, obrigada, você é fixe, stôra! Nunca mais me porto mal, JURO! O D. tinha razão, você é a maior!" Pasmo. Sorrio-lhe. Sugiro que se sente até que toque, que organize a mesa, que alinhe a cadeira, que se aprume, está mesmo a tocar.
Saída. F. ri de novo, como um bebé pronto para o sono da Paz, levanta-me a mão em saudação, cordial. Um novo amigo emergindo do quase-ódio?
Eu fico a sós, quase chorosa. Minutos de olhar no vazio, voz dorida, combalida, cabeça que explode. Abro uma janela e fico a ouvir o som do farol, ao longe. Agradeço a Deus por ter estado comigo. Estou desfeita por dentro do cansaço emocional, mas Deus esteve comigo. Cada vez mais, a cada novo dia, precisarei de Deus comigo em muitas mais aulas de substituição. Como eu - feliz, fortíssima, adorando o ensino - muitos que não estão tão bem. Seres humanos doentes, gente que teve AVC's, mais velhos, menos fortes de espírito, menos inspirados... e os depressivos, todos os milhares de depressivos que se arrastam no ensino. Lastimo por todos eles, todos os que já mal se erguem... e por todos os que, não tendo Deus, clamarão a sós no deserto. Deus esteve comigo. Esteve sempre comigo quando, a sós, fechei atrás de mim a porta e mergulhei no baque brutal do barulho do pavilhão cheio com 500 vozes que gritam a plenos pulmões. Tolero cada vez menos o barulho. As vozes. Não estão no meu cérebro, não sou esquizofrénica, mas são mais de 500, ecoando no pavilhão, no centro de todas as portas que fecharei durante mais 20 anos... se Deus continuar a aceitar vir à escola comigo...

3 comentários:

Il Dissoluto Punito disse...

Inês,

A adolescência - que comporta um reviver de dinâmicas conflituais passadas (nomeadamente no que se refere ao poder, autoridade e controlo) - precisa de limites!

O que mostrou aos miúdos é que a autoridade - a sua, no caso -, tolera ser questionada, mas jamais permite ser posta em causa!

A autoridade e o firmamento dos limites são estruturantes, em termos psíquicos.

Deu uma lição de saúde mental, aos garotos, no sentido em que os conteve! Pergunto-me se, o mor das vezes, não é isto que os adolescentes esperam de nós, sempre que nos confrontam: serem contidos!

Anónimo disse...

Olá, "Dissoluto Punito"!

Mais uma vez, obrigada pelo animador comentário: no ensino precisamos tanto de ânimo!...

É bom saber que membros da comunidade não-professores (suponho que não o seja) compreendem esta necessidade de firmeza com os miúdos. Ensinaram-me a ser firme sem ser autoritária, mas já tive de ser uma autêntica generala muitas vezes! A mim, basta-me abrir mais os olhos para obedecerem. Mímica terrível, a minha. Ah ah, nisso sou mesmo operática!!!
O melhor? Os miúdos respeitam-me, não há nenhum que deixe de me cumprimentar nos corredores e pedem-me, sorrindo, que lhes substitua os professores!
Valha-nos isso, ufff!...
Alguns são esgotantes. A minha estratégia tem sido primeiro perceberem que, em última análise, eu controlo a aula e as decisões são minhas; depois, tudo se faz a partir de cedências, diálogos, riso, ironias que compreendam, elogios, "picanço" quando discutem, como o velhinho "isso ainda vai dar casamento"! :0)

Acabamos à gargalhada, eu mais corada do que eles! Adoro ensinar, mas sei de colegas que ficam em trapos em pouquíssimos anos...
Hoje em dia, é para gente de personalidade forte, muito forte!

E já dizia a minha bisavó R.: apanhamos mais moscas com uma gota de mel do que com um barril de vinagre.
Com a turma X, foi preciso avinagrar até perceberem quais eram os limites. Ainda não são "manteiga", mas já vou derretendo a maioria (também é verdade que têm uma directora de turma absolutamente excepcional, uma jovem colega lisboeta de gema que os mete na linha, ou não fossem os nortenhos levados da breca para os levantamentos populares,livra!).

Às vezes, sai-se de 90 minutos de aula quase de rastos. Tudo emocional, claro.

Mas reafirmo: esta é a melhor profissão do mundo!

1 grande abraço
(incluo os outros 2 elementos da família, claro!)

;0)

Inês Alva

Il Dissoluto Punito disse...

Olá Inês,

Só para que conste...além de melómano, tradutor e psicólogo, sou também professor (na Católica)!
Compreendo os seus anseios, embora no superior, a coisa seja mais soft...

outro abraço

:-)))