5.2.06

Gatafunhos abalam a Paz podre

Vou lendo em muitos lugares (nos jornais, neste, ou neste blog, para referir apenas dois dos que leio) comentários ao caso das ilustrações sobre a figura do profeta. Quem sabe um pouco de islamismo sabe que o profeta não tem rosto - é proibida a sua coisificação, aliás, o mesmo acontece no livros sagrados da cristandade, sendo clara a ordem divina que proclama "não adorarás imagens", numa clara alusão à representação da suprema figura.
Neste caso, a minha opinião contará tanto como a de qualquer outro cidadão, mas creio poder afirmar que a maioria dos cidadãos não conviveu com árabes. Eu sim. Aprendi os rudimentos da língua (aprendi também a escrever frases-feitas-para-aluno-debitar), recordando muito pouco e, infelizmente, da ordem do mais singelo utilitário. Lembro-me frequentemente de como a minha professora era de tal forma pró-islâmica que, posso afirmá-lo, nos fez assistir a lavagens cerebrais às jovens de origem árabe que compareciam às mesmas aulas. A forma como falava do Islão deixava-me perplexa: como poderia uma jovem de trinta anos, francesa de nascimento, defender com tal firmeza alguns dos ideais religiosos islâmicos? Dessas poucas vezes em que nos falou da cultura, usou o francês. De resto, todas as aulas eram em árabe. Portuguesa e apenas francófila, tive de esforçar-me por aprender uma terceira língua (neste caso, era já a quinta!) sem ouvir uma única palavra da língua-segunda, o gaulês...
O que aprendi sobre a cultura árabe diz-me que não há grande espaço para exageros comportamentais - o que funciona como um bom controlo social -, mas isso não impedia que as jovens árabes - que, como eu, frequentavam uma universidade francesa - tivessem as suas liberdades de linguagem, vestuário, liberdades de ordem sexual, as suas experiências com café, tabaco ou drogas. Os homens árabes, sujeitos a algumas restrições sexuais por herança religiosa, eram particularmente sensíveis a belezas caucasianas e assisti a desesperadas declarações de amor e pedidos de casamento antes mesmo de uma primeira noite! Recordo-os vorazes e fui ensinada a não os olhar nos olhos, mantendo apenas a gentileza necessária, sem rudezas ou laivos de repulsa... Nunca indaguei muito porquê. Usar os mesmos elevadores com rapazes que nos devoram de olhares é, por si, suficientemente constrangedor para que não sejam feitas muitas mais indagações. Desconheço porque são tão ciosos das suas mulheres - ai da que lhes fosse infiel! - mas sei que eram considerados por quase toda a população universitária feminina não-árabe como "perigosos", não sendo, sequer, aconselhável, se um nos tinha em mira, circular a sós em lugares mais vazios, porque havia boatos de rapto. Respeitei, fui respeitada. Reaprendi, vivendo, o que me ensinaram a minha família e o sistema de ensino português: há assuntos que são mesmo sagrados e nunca ninguém pecou por abster-se de manifestações quanto àquilo que não entende.
Sobre o que aconteceu a muitas mulheres casadas com islâmicos aceitando os preceitos da cerimónia religiosa, é fácil chegar a conclusões: os nossos hiper-mercados estão cheios de literatura a propósito (creio que o nome de uma das obras - "Vendidas" - dirá algo aos mais distraídos). Há muitos relatos - basta falar com emigrantes nossos em França - de árabes que levam as crianças para o seu país de origem, ficando as mães impedidas de qualquer tipo de relação com os filhos. Não creio estar a ser incorrecta: limito-me a referir o que leio, o que me foi dito por quem viveu de perto casos destes (na família, inclusivamente, havendo casos de europeias obrigadas ao uso do véu)...
Concluo, fechando o círculo: talvez a verdadeira inteligência das chamadas "civilizações ocidentais" fosse deixarem de conduzir-se pelos padrões dos norte-americanos no que toca à visão do resto do mundo. Os islâmicos não têm de adaptar-se a nós por nada deste mundo nem do outro. Cada cultura é o que é. Evidentemente, devemos interferir com muita diplomacia - o mundo encarregou-se de tal, inventando essa grandiosa ciência política - quando, por exemplo, uma mulher indiana da casta superior é imolada na pira funerária do marido (ainda acontece em algumas regiões!). Contudo, entra-se na chamada "ingerência em assuntos internos" quando se ridiculariza um valor considerado intocável para todos os povos que constituam uma "civilização". O direito à chamada liberdade de expressão é tão válido com o direito de defesa do culto ou religião, o que não dá a nenhuma "civilização" o direito de, exprimindo um doentio sentido de humor, representar anedoticamente, o que não é representável. Brincar com Deus tem os seus quês. Deus até pode perdoar, mas um islâmico de facção RADICAL não o fará, nunca, sejam quais forem as melhores intenções dos agitadores de bandeiras democráticas. Aqui, bastava estar-se quieto. Deixar passar a poeira que 11 de Setembro levantou e esperar que o mundo girasse, até que - sabe Deus se daqui a muitas gerações - o radicalismo se auto-anulasse. A teoria da terra-queimada parece-me ser a pior opção possível. Os europeus, os norte-americanos continuam a querer dar lições ao mundo. O mundo já não é uma miragem de impérios. Tem vida própria e nem tudo se consegue pela força das armas. Pagamos agora por todas as lutas, todas as Guerras Santas de gerações antes. Não nos chegará?
Evidentemente, Plantu e os seus colegas cartonistas, não têm famílias nos lugares onde agora se evacuam embaixadas... Quando alguém ofende grosseiramente no âmago, tem por costume dizer que o ofendido não tem sentido de humor. Os radicais não o terão, além de que não se pode ameaçá-los, sequer, com a morte. Os pretensos paladinos da liberdade de expressão (que não vivem no meio da guerra) não têm um sentido absolutamente mais importante: o da responsabilidade. Alguém pagará com sangue. A experiência,a História dizem-nos que são sempre os mais inocentes. Num mundo avesso ao sagrado, tornou-se normal que as "liberdades" estejam acima das crenças de alguns. Esquecem-se de que a crença é, as mais das vezes, uma liberdade avessa à expressão do lixo mental das maiorias que se consideram "livres" até para aviltar quem nem da morte tem medo. Estranha ordem de valores assumiram os Direitos do Homem... A diplomacia perde terreno quando os idiotas do mundo livre trabalham contra a paz, já de si (tão) podre.
O mundo tem, de facto, memória curta. Que pague o seu preço com vidas: as dos outros. Para sempre, serão os filhos dos outros a pagar com aquilo que nem o profeta devolve: a vida. Não há liberdade de expressão que valha uma vida.

3 comentários:

Anónimo disse...

A tese é excelente, sem dúvida, mas de fundamentação niilista, preconizando a auto-censura, a inanição (intelectual, criativa, crítica) ou, em última análise, a cobardia por antecipação: "isto pode dar problemas com os árabes, deixa-me cá estar caladinho".
Como poderia o "cartoonista" adivinhar que aqueles desenhos iam dar tal sarrabulho?
E, afinal, quem mata, matou ou matará pessoas inocentes? Os radicais árabes ou o próprio "cartoonista"?
A "professora" citada no "post" é um paradigma de lavagem ao cérebro. Presencial, em directo. O que a "indignação" árabe representa é a intençao de lavagem cerebral à distância; limpeza étnica remota, também em directo. E não tão remota quanto isso, pelos vistos.
Uma mulher a defender o obscurantismo muçulmano é tão absurdo como um esquerdista iluminado a defender a longa noite comunista.

IVA disse...

Compreendo o ponto de vista, Dodo. Chame-lhe o que quiser. Se isso - a "cobardia" - poupar vidas enquanto não assente a poeira (desde o 11 de Setembro!), seja. Parece-me definitivamente melhor (re)ver os ânimos acalmados do que multidões em fúria: significa que ninguém está em perigo. A liberdade de expressão lá sobreviverá. Uma vida não se devolve.

Mais uma vez, são apenas opiniões que se vão expressando. Talvez daí não advenha nenhum mal ao mundo.

Obrigada pelo comentário.

Inês.

Anónimo disse...

Ok, "prontos". "Axandremos", entonces. O tempo se encarregará de demonstrar a evidência: o cartoon é um pretexto. Mas 'tá bem.