20.2.06

Fidelis sunt...



17.4.2004


Azimutes, dezoito dias do mês de "águas mil". São 20 horas e doze.A penumbra assoma ao céu, curiosa do que se passa sobre a Terra onde nos movemos nós.
Observo as formigas que correm sobre o montículo de açúcar que lhes coloquei sobre a mesa desta cozinha do farol. Pensei na "sémeuse" dos franceses e na sua frase "Je sème à tout vent". Os grãozinhos de iridEscências várias espelham o mundo a um nível quase nanotecnológico, tal como as formigas e os coleópteros inspiram desenhadores de autocarros, naves, capacetes ou até os ergonomistas que aperfeiçoam o mobiliário à medida do ser humano. A imitação que a arte faz da natureza comove-me sempre, e, apesar de muitos tomarem o todo como dado adquirido, eu gosto de pensar - reminiscência budista que faria sorrir o meu guru - que até uma formiga faz a diferença. Foi porque alguém se fascinou a observá-la que se descobriu como funcionam as linguagens destes seres minúsculos, como aquilo que segrega uma determinada espécie da Austrália tem poderes cicatrizantes e analgésicos ou ainda como pode ser perigoso dar um pontapé num formigueiro, como alguém recordou há tempos, como metáfora política. Às formigas é indiferente se as colocam em "ant farms" para os miúdos americanos ou se lhes são eliminados alguns indivíduos em nome da ciência. Limitam-se a perseguir o instinto e a obedecer aos batedores ou pioneiros e aos soldados patrulhadores.
Mas nós, que corremos sempre em direcções opostas às da maioria em nome da originalidade, nós que nos arrogamos o direito de criar, vamos ainda dar crédito a quem nos quer como cópia de si a papel químico?
Que nos interessa dizer bem as frases que não são as nossas?
Durante quantas gerações ainda nos escusaremos a pensar com os nossos próprios cérebros? Não seria melhor que se fossem estendendo as consequências ao nosso próprio destino que o livre-arbítrio nos faz projectar como seres absolutamente livres? A própria ciência criação pura foi dos revolucionários, dos criativos, dos contraproducentes e até politicamente perigosos. Se Pasteur não tivesse inoculado o pequeno vitimado pela raiva com o medicamento administrado a cães dias antes, como saberia curar a doença?
A ciência, todas as artes, tudo aquilo que é novo são a sabedoria em germe, mesmo se não passa de nova versão do já criado há séculos. Repetir as mesmas frases dos mesmos livros pelas mesmas bocas poderá, quando muito, educar o povo insano e desconhecedor, mas e se há quem já saiba tudo o que se diz e sobre isso tenha reflectido, para que serve repisar as frases feitas que, na verdade, não postas em prática por quem as grita, estão mortas? Só a criação e a reinterpretação podem trazer novas verdades a um mundo em busca constante de respostas. Não basta beber dos sábios.
Quem o diz, não o faz.
Quem o faz, não o diz.
Por isso, todos os cientistas sobre os quais li na verde adolescência enquanto a maioria fazia festas, os "Homens que mudaram o mundo" e os "Deuses e Demónios da medicina" foram, na verdadeira acepção da palavra, criativos, não plagiadores, mesmo se devem aos que os precederam as dúvidas filosóficas. A filosofia pode ser a base, mas a ciência é pragmática e baseia-se em paradigmas. Até prova em contrário, tudo é verdade. Talvez até Séneca seja risível, um dia. E depois, atrás de quem se esconderão os teorizadores das filosofias de milénios?
O futuro será, espero, muito mais exigente. Para o nosso próprio bem. Júlio Verne, um génio, é prova de que a ciência é invenção que persegue a ficção e só pode ser filha daquilo que nos guia: os sonhos!

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Inês / 20:47
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Que tudo volte à serenidade daquele 22 de Maio de 2003, quando, afinal, ela nasceu.
Azimutes, décimo sétimo dia do quarto mês.
De como tudo anda num círculo que se fecha sobre nós
A noite surpreendeu-me na praia, perdida em pensamentos à procura de quem sou. A espuma acinzentou-se na penumbra e só as aves retardatárias chamavam os filhos, há pouco. De braços cruzados, encostada ao velho barco que anseia por voltar a ganhar o largo, pergunto-me o que se passou entretanto. Houve escolhos no caminho, sem dúvida e eu sei a causa. Sempre que há interferências algo acontece. Tudo tem de ser unívoco e escrito com os mesmos dez dedos honestos de sempre teclando no piano alfabético, como no filme japonês quando o erotismo nascia do desenho de caracteres sobre a pele.
Assim é a alvura de um écran, esta pele sobre a qual digo de mim, do que me acicata, me muda a cor aos olhos, me move o ventre em espasmos da lentidão sensual de Kundera. Faz-se amor com as palavras e nunca se está só. Paul Claudel, o místico, fala-me ao ouvido direito e diz-me do medo de estar vivo quando a lucidez percute os tímpanos, chama-me Marie, faz-me cócegas com a sua voz de um veludo agreste, agitando-me a pele como a brisa marinha agita as penas perdidas das gaivotas ou o vento no deserto alisa e acaricia as dunas, o que provoca o lento fechar dos olhos e o semi círculo em barco na boca. Proust descreve-me a natureza num sopro suave sobre a nuca, afasta-me os cabelos para perceber quem sou sob a massa escura de queratina e faz-me perceber como foi inteligente tudo o que disse e como faz tudo bem quem lê, quem de facto lê muito, nos livros como na natureza. Henry Troyat lê-me, em voz baixa "O bater solitário do coração" e diz-me que a velhice se aproxima. Sorrio-lhe como quando o li pela primeira vez... Boris Vian também está no meu peito todos os dias e aí cresce-me o nenúfar que matou Chloé que Colin amava, ao sabor de "L'écume des jours"... A Física e a Matemática da época transformam em palpável o que se cheira, a luz do sol nas torneiras provoca a formação de bolhas de ar que se eleva e, o que se ouve, ectoplasma-se no éter, como hologramas românticos sem o spleen de Baudelaire. Ah, como todos eles sabiam!
Em todos esses homens poisar como borboleta e fugir quando deixam de ser um mistério... Aparecer uma mulher como a chuva de Verão e eclipsar-se como ela se evapora de seguida. Ser só a que fica de passagem e num só ter o mundo inteiro. Perfurar só de olhos a cumplicidade dos seus olhares inteligentes, absorver toda a sabedoria, ser amada de fugida em pensamentos e seguir adiante como se não fosse ainda esse o escolhido... E de todos levar o código para compreender a magia das pequenas coisas que se fazem, apreender os momentos de brilho em que, sorrindo - uns - ou sofrendo - outros - criaram a perfeição no ordenamento das palavras saboreadas e alinhadas pelos dedos de deuses.
Ah, ler... ler como se toma um alimento que primeiro se cheirou de olhos fechados e se tocou com volúpia, a pele dos dedos transformada em olhos de cega, a procura dos contornos redondos de um pão acabado de cozer, o som que faz quando é cortado pelo centro com dedos ávidos e reter o calor que se liberta da massa ainda húmida e fumegante. Encher desse ar os pulmões, fazer mmm num sussurro e depois saborear como se fosse esse o último desejo de um condenado que se despede de estar vivo. E, no meio de tudo, ter já uma imensa saudade do futuro, desses homens que escreviam como quem faz amor, desse pão que alimenta corpo e alma, poisar livro e pão e engolir água, vê-la à transparência no copo que lhe dá forma, ouvir-lhe o chocalhar das bolhas que o ar liberta. Levantar-me, assim, devagar, e voltar a deixar a maresia adentrar-me todos os poros, rodopiar de braços abertos e olhos fechados, os grãos de areia imprimindo-se nas linhas onduladas da pele dos pés. Ficar a sonhar acordada, fechar o círculo até que a noite me surpreenda na praia e este texto volte a ser nada...
Beijos nas palmas das mãos de quem lê. Para dar paz à noite.

Posted by: Inês / 01:10
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16.4.2004

Em frente ao Atlântico, ainda a sentinela de cabelos revoltos. Pés nus sobre o chão, olhos semicerrados pela brisa que acicata outras vontades, procura ainda os mesmos sinais. Saber esperar é uma virtude. Tudo o mais é passageiro.

Posted by: Inês / 17:15
Beijos de Paz, leitores meus do passado e de agora. Agradeço todos os mails e as flores virtuais. Que a ficção nos cumule de Graças, hoje como ontem.
:0)

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