Uma, duas, três gotas. A previsibilidade é um conta-gotas. Ganhou o dia quando lhe chegou o esclarecimento: nessa tarde não haveria reunião. Afagou o frasco das drageias e, de um trago, fez-se engolir pela voragem. Saiu, em revoadas de optimismo. Como se tudo dependesse disso, segurou ainda o puxador da porta, o trabalho chamando-lhe o nome. «What the hell...». Deixou a pasta no trabalho e foi deitar-se na areia da praia.
Mal sabia que era esse o seu último dia de vida. O último dos dias iguais. A partir daí, mudaria tudo. Não voltaria a ser a pessoa de uma hora antes. Selou o pacto com o mar, quando a primeira gota foi vertida em milhões de areias, fiéis depositárias da seiva que a linfa irmana. Acre, o cheiro da quase-morte devolveu-lhe a única fidelidade possível: a si. De seguida, caminhou até que as botas se lhe colassem, como fazia um tal Michelagniolo Buonarroto. Dele, nesses tempos, corrompeu-se o corpo. O mundo, hipócrita, revê-se hoje na capela Sistina.
Também a mente dos sensíveis ri - lupina até às gengivas - de tudo o que é ufano: os prostitutos de alma escorbutam-se, lazarentos de glória. Gota a gota, respingam-se. Mãos imundas, soerguem a carcaça, vampirizando os dotados. Estes, conhecendo o cinismo, voltam-lhe a face: só a ternura salva. Reconheça-se, contudo, a clarividência do instinto que lhes conserva anonimatos, beleza intocada, amores eternos, amigos fiéis. Destes e de outros tesouros, os vendidos apenas suspeitam. Pensarem que dominam faz parte do plano. Tal como o cinismo se opõe ao pudor, assim a celeuma dos remadores se oporá ao silêncio do templo.
Este texto fecha-se em acordes de guturais blues, entrelaçando-se numa narrativa contraditória: sóbria homeopatia nos conceitos; profusão de palavras como os beijos que não cessam nas noites em que faço meus os teus membros glabros. O amor a quem o sabe fazer. Eu disse-te: os meus dias sou eu que os fabrico.
Vem cá: eu mostro-te em conta-gotas quem manda afinal no teu corpo. És parte da minha cura: acendo-te devagar, sem efeitos placebo, enlouqueço-te num largo espectro de doses homeopáticas. O melhor? Não tenho literatura inclusa. Guio-te as mãos: lê-me na pele em Braille...
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