15.2.11

Marés


Cinza. Hoje, o mar está cinza. Teimoso, insistente, protuberante, desenovela-se em galáxias, pois que é nele que se espelham todas. Quantas cabem nos oceanos que temos? Todas, se quisermos?... Até onde nos corre a imaginação em delírios, pois se até ela acaba e, no fim da palavra, correm "rios"...? Até onde podemos congeminar, nós, os pequenos humanos? Terminará ela, a nossa capacidade de sonho, liquefeita, no marulhar gasto e espesso de séculos de turbulência? Como me diz a mãe, sempre que vê o mar:

- Ei-lo, o bicho... O bicharoco que me persegue em pesadelos... É tenebroso, o mar.

- Medonho... - respondo eu em palavra que amo - Medonho! Adoravelmente medonho!

(...)

Os diálogos perdem-se, as palavras impedindo que se abarque tal assombro com elas, porque nunca chegam: o mar engole-nos por dentro.

Depois, por dias de sol, passa-se ali, mesmo ao lado, como ao lado é o Cabo Tormentório - que todos trazemos dentro - e desagua-se em Vila do Conde: ali está a nau. O medo que lhe tenho, o respeito que me inspira a negra quilha, o sagrado lenho, o pavor que me transtorna sempre, como se tivesse ainda os oito, nove anos:

« - Avozinha, não quero aproximar-me dos barcos com musgo, mortos ali na praia. Tenho terror dos barcos da praia, porque lhes vejo a alma...»

O barco negro (assim lhes chamavam os nipónicos, diz-se) provoca-me sempre uma convulsão de medo e ele enrola-se nas vísceras e dói-me por dentro, como se nele, barco, tivesse eu morrido, em vidas passadas. A Vila olha-me, branda, compreensiva, mas o barco rasga-me gritos endogenizados, guinchos de bicho em pânico, acossado, psychotizam-se laivos de sangue, em dor liofilizada, microfilmada, percutente, riso lupino da morte - minha amiga, mas que me espreita com máscaras contorcidas quando quase a aceito, mas a quero dócil e as carantonhas que ergue me acometem nas esquinas da casa escura e sozinha, voláteis, elas, assincopada, a minha golfada de oxigénio entrando a eito -, como se tudo o que eu sou estivesse inadiavelmente inscrito no cerne daquela nave marinha...

O barco negro rasga-me sempre o dia, porque nunca me lembro que ali repousa, como reaparecido após séculos de viagem. E o mar, que tudo sabe dele e o quis ainda vivo no dealbar de nova era, é conivente, cúmplice de funduras algosas onde não quer este filho negro que o galga - como o teu corpo, sobre o meu? -, ri um riso só dos dois e espraia-se no casco, entre afagando e percutindo, cerce, em marcas de amor dorido e lento.

- O mar sabe-a toda... O mar ri de tudo o que a nós traz rugas na testa, de tantas perguntas que levamos do mundo sem resposta, secos, hirtos como cartografias pergaminhadas, cansados de tanto nadar a contra-corrente. Por vezes - tantas! - para ter paz, tenho de recordar que isto me guia:

- Senhor, seja feita a tua vontade... As marés, elas mesmas mares-fêmea, nunca te acusaram o cansaço?... Não me deixes pensar tanto: o que levo é o que trouxe, uma ausência de medo, um deslumbramento que me morre entre os dedos, uma ânsia de, como Agostinho, fugir-te, para que me procures e me fales em tudo e em tudo estejas, como este mar que me cerca, ilhéu-fêmea, relapsa, vaga-mundo, dor-de-pensar ao que vim, eu, que quero ser não sendo, fugitiva de pés nus sobre o vidro que o pensamento é. Disso tudo o mar sorri. Tem milénios de tempo, o canalha… Como o amo, de tanto não o poder ter, sequer, nas veias!


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