19.11.10
Da "S" e outras crianças
A "S" é a filha que eu queria ter tido. Tal como o "F" é o filho que nunca terei. Há muitos, entre eles, que vou escolhendo para "meus", na casa que encontro vazia de vozes infantis quando chego. Sem mágoas, contudo, que eu sei porque me quis assim e isso só a mim importa.
E contudo... e contudo. A nota de 86 que ontem entreguei à "S", no teste visto de fresco, fê-la voltar-se para a colega também pequena que lhe sorria na sala - a turma já tinha saído quase toda - e dançar um samba horroroso que a deformava em todas as direcções e lhe espetava o rabo na direcção da mesa onde eu arrumava papéis e orientava sumário, entre outras quezílias da profissão geradoras de amargos de boca, por escolares, anacrónicas e estupidificantes. Desculpei, à pequena "S" a sua dança tribal porque a vi, naquele instante, filha de pai morrente num certo hospital, a terminal doença marcando, já, epitáfios que tão ligeiro ser - loira e vivaz como é a "S" - não merecia tão cedo na vida. A sala tornada sambódromo, pude alegrar-me - eu, que odeio "sambantes" - por ter o meu "86" escrito a verde alegrado quem ultimamente tanto chora. Desígnios pequenos, nadas avulsos, momentos esparsos: disto se faz a alegria hodierna de um professor que viu nascer o século. No meio da turba, sambando ao som do toque das caixas múltiplas, foi aquela miúda a reabilitar-me aos olhos de um dia gasto. No meu sorriso contristado, na meia boca que inclinei, estava toda a alegria possível, quando as notícias do meu país me trazem uma estranha estrela alvinegra, de quatro pontas, bombardeando a eito, como um alvo apontado ao peito que todos trazemos pesado. Em que medida serve a estrela à "S"?... Saberá o que por detrás dos seus sambinhas trezeanistas se maquina algures?... Ensinar-lhe-á a História que para nada servem as suas notas de "86" num mundo onde os novos bárbaros vestem fraque e as armas que trazem dentro dos contratos têm nomes científicos? Muitos "86" ajudarão na subida dos degraus até ao fim do jogo? Quando perceberá a pequena que o 1% da sua alegria nada conta no mundo real que encena outras danças fora do gradeamento da escola?...
Ensinar-lhes que cada etapa é apenas um degrau será suficiente como força para aguentar o peso da vida? E agitar ainda as bandeiras da seriedade, da meritocracia, da lealdade poderá salvá-los dos orangotangos perfumados que, por estes dias, sentarão as partes nas sanitas dos hotéis de luxo? Como manter a salvo os nossos melhores, os nossos ainda perfeitos incólumes, num mundo onde a inversão de tudo o que é válido nos satura os tímpanos? Como dizer-lhes que estão a prazo, enganados, a recibo verde da corja que os militares guardam como tesouros? Como fazê-los perceber que a população inexistente nas ruas de Lisboa por estes dias é o vazio metafórico do lugar onde todos já mergulhámos há tanto tempo que já ninguém sabe quem é?...
Na minha retina, as imagens deslizam, vertiginosas, fel do ódio que tenho à mediocridade. Fico feliz pela felicidade alheia. Entretanto, a pequena "S" saiu, samba algures, sorrindo, em direcção ao dia claro, mochila às costas e faz o que a mim me ensinaram tão bem que fiquei nesse mundo para sempre: sonha que, algures, há um sítio melhor do que a realidade que muitos, canga nos ombros, absorvem como à última golfada de oxigénio no planeta. Asfixia devagar, mas para seu bem, ainda não lhe disseram...
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2 comentários:
Olá, Inês!
È só para dizer-lhe que continua genial e, em consequência, que o seu farol é um oásis
rodeado de vulgaridade.
Ab.
Zé
Inês,
A "S" e o "F", que sente seus, serão velhos conhecidos em novos encontros, pensa este seu amigo.
Quem não gosta de dar conselhos, atreve-se a pedir-lhe que leia o arrebatador "Muitas vidas, Muitos mestres" de Brian Weiss que, respondendo ao essencial, abre horizontes nunca antes tão claramente revelados. Era o livro que lhe gostaria de oferecer, soubesse eu onde fica essa casa do farol. Peço que acredite.
José
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