30.7.08

Onde vais, Portug(ra)al?

Uma adolescente fala ao telemóvel enquanto caminha. Pelos gestos, percebe-se que seduz alguém. Não terá mais de catorze anos, mas o decote tem quase dois palmos. Entre outras coisas, lamenta-se: que está "só, em plena cidade, em pleno sol, uma mulher sem alguém que [lhe] me chame DE (!) mulher, que repare...". Sem qualquer tipo de pudor, avança na conversa, enquanto se meneia pela rua. Não lhe caberá, talvez, na cabeça, que a mãe que a espera no carro também se iludiu com aquilo a que muitos chamam "o amor". Hoje, conduz e tem alguma independência, mas também ela se ficou pela pouca escolaridade, a troco de sexo precoce e um primeiro emprego no qual já era explorada. O lugar onde toda esta gente anónima bebe a ideia de que a vida é uma publicidade de tv não deve ir além do café, de umas férias pagas a prazo e de umas leituras miseráveis por entre revistas de gosto duvidoso. Percebe-se rapidamente que durante uma nova geração, pelo menos, a grandeza discreta no porte e as ambições de saber mais do que a simples sobrevivência não lhes tirará o sono. Talvez o irmão mais novo seja alvo de caça fácil de mais um computador "Magalhães", através do qual talvez venha a navegar (estará o aparelho adaptado para essa Terra Prometida em direcção à qual tanto acenam os políticos?), depositando no teclanço as suas ambições e o futuro projectado da Nação, enquanto o navegador cujo nome agora se usurpa dará eventuais novas voltas no túmulo, a par de milhares de professores e outros (demiúrgos?) que tanto se esforçam por ensinar a dignidade do trabalho e do afinco, do brio e do mérito, do decoro e da honra que parecem ser eterno alvo de troça da Nação, encabeçados por (ineducáveis) titulares de pastas ministeriais.
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Um adolescente de não menos que dezasseis anos espera numa sala. A sua posição é a de muitos quando se apresentam nas primeiras aulas de qualquer escola: escorregando pela cadeira, a zona destinada ao apoio do centro das costas é onde assentam os ombros. Vê-se-lhe a roupa interior, na qual ninguém está interessado, excepto a namorada que chega. Converseta execrável, beijam-se e/ou lambuzam-se em público, perante gente com idade para que se lhes chamasse avós... De vez em quando, ele ri para o telemóvel. Ela deambula, esperando a consulta médica. O vocabulário é pejado de palavrões, esses que a esmagadora maioria dos bloggers cuja cor política nem me atrevo a identificar usa com profusão, como o fará, suponho (e eventualmente) em pleno tribunal, na frente dos filhos, na dependência bancária ou consultório médico, no spa onde deixa a pele morta dos pés ou a esplanada por onde arrasta a parte do corpo sobre a qual se senta, aquecendo, quiçá, mais umas cadeiras até que se lhe acabem os dias de "saison à idiots" e, de novo, se apresente perante uma metrópole de pele menos urbana e mais dourada, com trapos de tamanho indicado para as sobrinhas de nove anos. Assim se encontravam os apaixonados jovens até que deram por findo o calvário de esperar a sua vez - coisa de pobrezinhos sem mais nada que fazer, pareciam pensar. Como quase todos os seres vivos nacionais, considerarão que transportar um livro é para imbecis, pelo que, em férias, tal como em tempo de aulas, transportar um portátil até coçar a pele do ombro é que é ter estilo. Ainda há-de chegar o dia em que os info-excluídos - talvez até os que transportem livros, e mesmo pertencendo às melhores tertúlias do burgo - serão fuzilados com os olhares dos cidadãos do futuro. Mais uma vez, imagina-se - deste meu lado do vidro, com o testemunho destas minhas mãos teclando, castas - que o célebre navegador, tal como todos os que já se foram, dará voltas no túmulo, mas não se manifestará o seu ectoplasma, pois foi-me dito que as permanências manifestáveis aos vivos não ultrapassam os trezentos anos... E a História, já se sabe, não interessa a fracos, pois que deles ela não rezará, um dia, por isso se aviltam os heróis do passado sem sanção à vista, uma vez que sobre o uso da bandeira estamos (mui) conversados...
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Como a velha de espírito que sempre fui acrianço-me, fascino-me pela razia no bom-senso que é este terreno a que chamam país. A estupidez há-de chocar-me sempre e é imorredoira, pelo que me imagino com o fígado destruído antes dos quarenta. Como fazer esta gente que nos ombreia recordar o nome pelo qual responde? Quantos estão cientes dos seus genes e da responsabilidade que é pisar este solo? Quem conseguirá reerguer bem alto um padrão em novas praias? Onde haverá lugar para a excelência a não ser reavivando o mito dos estrangeirados? Que nação é esta que cospe no que dela brota, que exclui os melhores, que teima em fazer da corrupção e da vileza um estandarte imundo? Aqui, definha-se.
É neste contexto que me ponho a ler maravilhas como estas e pasmo. Com Deus por testemunha e a licença do autor de livros que venero, transcrevo o excerto do livro com capa em cálice do Graal, sem querer contaminar o que é santo e messiânico com a escuma(lha) que hoje povoa a "Luzitânia"*:
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«Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
O plantador de naus a haver,
E ouve o silêncio múrmuro consigo:
É o rumor dos pinhais que, como um trigo
De Império ondulam, sem se poder ver.
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Arroio, esse cantar jovem e puro,
Busca o oceano por achar;
E a fala dos pinhais, marulho obscuro,
É o som presente desse mar futuro,
É a voz da terra ansiando pelo mar.»
Fernando Pessoa
(sobre D. Diniz)
* Créditos da expressão ao autor que aqui se enuncia.

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