18.7.08

Anátemas

O meu país faz-me lembrar um lazareto. Será, talvez, por ter lido A Ilha, de Victoria Hislop, um romance bastante aceitável (mas apresentando erros de tradução graves, como sempre, com tropeções inacreditáveis nos chamados "discursos indirectos"). O livro é sobre a saga de uma família de origem grega atravessada pela lepra, pelo crime, pelo ciúme, pela ternura. O costume, nestes casos. Divertida com a frase "dois gregos, uma discussão", pergunto-me que "parlamentações" desenvolvem as inúmeras famílias que vi sentadas em esplanadas, esta noite. O país parece marulhar suavemente, como se tudo estivesse sobre contolo. Entre esta e outras perplexidades, apercebo-me de que amanhã, pelo meio dia e quinze entro nos trinta e nove anos, data tão esperada como qualquer outra e, sem apresentar quaisquer indícios de depressão, dou por mim em ânsias pela hora de passagem para outro lugar. Tudo é demasiado imperfeito e, contudo, o que é perfeito apresenta-se como demasiado doloroso. Não sinto falta de nada a não ser silêncio, água e caminhos vazios para percorrer, o que me leva a concluir que sempre estivera certa quanto a um assunto deveras englobante a que muitos chamam "misticismo". Sobre esse e outros assuntos, debruço-me a partir de segunda-feira, numas longas férias. Pergunto-me se voltarei à escola e ao seu anátema de casa de saúde mental, mas com os loucos sem medicação. Tudo começa em pavilhões (e não são The Far Away Pavillions!) com cerca de 600 pessoas, gerações inteiras que são ensinadas a pronunciar tudo em gritos e projectar-se sobre os corpos dos outros com golpes de kickboxing... Como diz um grande amigo: é kafkiano... Um brutal esforço diário para manter a cabeça fora de água, que levo estoicamente como um estandarte e muita dedicação, num país que nunca a merecerá, por ser de tão curtas vistas, mesquinho com tudo o que brilhe, torpe com tudo o que lhe grite aos ouvidos as mais cruas verdades. Um país insano, aziago e cego, onde tudo está sempre igual a si. Nada disto me traz amargura, contudo, porque já não pertenço aqui e dirijo para outros lugares a ternura. Sei que um dia, quando fechar para sempre os lábios, é na minha língua - então já esquecida de muitos, talvez - que abençoarei a lucidez agridoce que me habita desde sempre. Cada palavra um diamante, cada voz uma bênção, cada verdade gravada a fogo. E contudo, e contudo, que execrável rochedo é o meu país!
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Retiro-me com uma das frases lidas, uma das "bonitas", com tanto significado como um ângulo cortante, das que gosto de guardar para depois reler, rolando-as na boca em voz baixa, num grito surdo contra o ímpio português do Brasil que todo o meu país adopta como vómitos de fel que me nauseiam a cada novo dia. O novo lazareto, a meu ver, é o lugar onde aqueles que deveriam defender o que os distingue dos demais (se) vendem naquilo que é mais importante do que o tecido de qualquer bandeira, pois a verdadeira Mátria é a Língua com que a nossa mãe nos fala pelos olhos da ternura. Como Duras, não acredito em bandeiras, mas no imaterial que, não sendo visível, nos faz ser quem somos, sempre que, a cada novo dia, abrimos os olhos e exclamamos, gratos: «Vivo! Estou vivo, meu Deus!». É por tudo ser tão perfeito que o mundo se acinzenta aos meus olhos verdes: a maioria dos (sobre)viventes não merece a vida, porque não entende a morte. Daí vêm todos os anátemas. Daí vem a morte da Língua nossa, tão amesquinhada... Durmo alerta. Aconteça o que venha, acordarei na minha Língua, nunca à venda, nem eu, nem a alma dela. Amo-a e dói-me vê-la aviltada, eis porque. Se a aviltar eu, que a memória me apague dela.
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«Pouco depois, na hora mais silenciosa da noite, entre os últimos momentos da actividade humana e a primeira agitação dos pássaros, Elpida deu um suspiro final e partiu. Pelo menos ela tinha-se libertado do seu corpo devastado.»
(p. 322)
HISLOP, Victoria, A Ilha, Civilização Editora.

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