25.4.07

Redacção: a liberdade



Dizem que andou por aí, hoje. Eu vi-a. Creio que era ela.


Ia a desaparecer por detrás de uns prédios, os daquele construtor que apodrece de tanto empreendimento lucrativo e não retoca as paredes com fissuras pelas quais se infiltra a água que entra nas casas dos moradores que não podem pagar a advogados.
Devia estar também no corpo daquela miúda de uns dezasseis que, alcoolizada, seguia com saltos vermelhos abraçada a um quarentão agarrado que lhe abocanhava o corpo gasto de tanto sexo pago.
Talvez fosse o cravo na lapela daquela mulher antiquíssima que trabalhou na fábrica e nunca conduziu um carro, accionou uma máquina de secar roupa ou teve opção de escolha entre ter um filho e abortá-lo, porque então eram os homens que mandavam.
Seria, por acaso, a voz dos meus alunos de oitavo ano que me diziam ter descoberto, há dias, os blogs nacionais e terem-se envergonhado porque as senhoras que neles escrevem têm linguagem carroceira e não terão, definitivamente, nascido para o apostolado do bom-senso nem para o que quer que seja a maternidade, "porque de filhos de gente dessa já as escolas estão pleníssimas, abarrotadiças" e um deles afirmou ser isso a tal liberdade de expressão.
Não afasto, de todo, a hipótese de ser aquela música que saltava pelas janelas de um vizinho amante de decibéis metalizados, ou os gritos da vizinha que gosta demasiado da cópula para perceber de sexo ou entender que é no silêncio e/ou nos sussurros que se experimenta o maior prazer, mas que entende ela de gnose?...
Está, seguramente, algures num quadro de Delacroix, mas esse está demasiado longe, num museu e o povo não precisa que a Liberdade o guie, porque ele me recorda muito mais, neste preciso momento histórico, os cegos do quadro de Brueghel O Velho que se deixam conduzir por um outro, como na parábola bíblica, com consequências óbvias.
Porventura estará nos corpos de criança tatuados a cigarro, chicote, colher-de-pau, chinelo, navalha, que têm de ser observados em urgências de hospital onde os progenitores alvitram possíveis quedas na escada, em liberdades de expressão englobando a fúria de viver.
Está, creio, nas quantidades imensas de água que gasto em limpezas de casa, banhos, máquinas de roupa, porque posso e sou livre de gastar na minha medida, embora saiba que por isso pagarão as gerações futuras, paladinas de outras causas porventura ainda mais perto do atributo perdidas.
Vi e ouvi, na abóbada, reflexos dos risos da miudagem que hoje lançou papagaios, balões e frases-feitas para adulto sorrir com cinismo. Havia palavras de ordem, risos e cravos - aziaga flor de odor tóxico, má escolha, duvidosos gostos de maiorias - além de pretensos credos de "somos felizes assim"...
Não me acabrunhei. Segui, risonha, mas discreta. Cravei o meu olhar nas crianças do consultório onde esperei três horas, após ter pago 65 euros, porque a liberdade tem um preço. Comi num restaurante bem onde se fumava e falava alto de mais. As mulheres presentes também tinham exercido a liberdade de pagar muitíssimo por pouco pano nas vestimentas e os homens, lúbricos, estrabizavam-se com tanta glândula mamária à discrição. Expressavam-se em liberdade ambos os lados, ambas as espécies convictas do bom uso do calão, em dia de igualdade, fraternos perante o "senhor dos anéis" que manipulava as travessas e elogiava a pueril facção y, rubro, casposo e de comiserável dentição. Pensei no conceito de classe. Tenho. Observo infinitesimais demonstrações de respeito pelos limites do excesso de cada um. Gosto da liberdade, mas uso-a com parcimónia. Não me acotovelo, não apologizo, antes oiço. Sou testemunha do meu tempo. O meu tempo é o melhor de sempre. Feliz, não me fecho, contudo, às dores nem ao vómito de vazio desconsolado em que vivem os menos circunspectos. Nasci para observar e cumpro o meu papel. Agradeço a Deus por não ser esta espécie de catarismo apanágio de maiorias: quem aguentaria, hoje, a contemplação da obra divina e seus desvios em nome da liberdade-livre-arbítrio?
Cumpro o meu papel de cronista. Cumpriu-se mais um dia. Creio que entrevi a tal liberdade quando oxigenava corpo e alma nas varandas e um grupo de mulheres fazia a caminhada diária em apressado, alegre bando. Os maridos - modernos guardiões do lar - terão, porventura, aproveitado para exercer liberdades que a espécie supostamente lhes outorga o direito de, como já ouvi à boca pequena dizer... De cima deste edifício, antigo farol semi-desactivado, sinto-me a mais livre das mulheres: insisto em caminhar a sós, ir ao cinema a sós, jantar a sós, conduzir eu os meus dias sem espécie dominante. Das noites, saberá Deus. A isso chamo liberdade: não dar contas a homem vivo das ínfimas revoltas diárias num mundo imperfeito e tosco, mas glabro e delicado como flor de estufa em precário equilíbrio.
Fecho o meu diário, enquanto a liberdade se encerra neste peito e se aconchega na carcela azul-celeste de mais uma camisa de noite que se fez fria como o é Abril. Amanhã, o país voltará a dar importâncias excessivas a cidadãos-eusébio, lobo-antunes e outras manobras de diversão de duvidoso bom-senso e bom gosto. Assim a caravana passará, estro em farrapos, esparsas mini-glórias, abjecções da tal liberdade, panis circensis... Fechar os meus olhos às modas é a minha não-servidão.
Quanto à liberdade, creio que andou por aí hoje. Eu vivi-a. Creio que era a isso que me sabia a boca quando uma criança anónima me estendeu uma papoila acabada de trazer de um campo perto de Azimutes. Creio que a multidão estava rubra de ópios vários e choro por dentro a vermelho quando digo que nunca antes a vi tão pouco convicta... Em teu nome só, liberdade, perdoo aos iconólatras de um pequeno país a que chamo meu. Por tantos excessos se tornou a liberdade maniforme e ganhou força a sinistra. Segura-te, democracia! O círculo fecha-se sobre ti. Que poder terá, então, um cravo? Sonha-se de mais. A História repete-se sempre que as memórias se encurtem subvertidas, alheadas, anestesiadas de medo. Num cenário de diletantes onde nunca mais voltará a inocência da trintona liberdade, será muito mais difícil actuar, um dia. Porque ousa mais o ignaro que acredita com fé pura do que aquele que sabe o preço de um não, mas prefere lamentar um destino que teima em eternizar avesso. Aos 33, espelha-se a liberdade no seu contrário: o direito à liberdade de anuir à ruína... Também isto é liberdade: expresse-se o hodierno, lúcido, irónico nojo.

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