2.4.07

Em nome dos primórdios,

volto a casa.

Maré vaza, vigésima terceira hora
do dia segundo do quarto mês.
Frente ao mar de todos os dias adentro-me no vento norte, junto à rebentação. Animais esparsos e, como eu, nocturnos, despojam-se das máscaras do medo. Lentamente, deixam marcas da areia que a água há-de levar, não tarda. O casaco invernal - como a lezíria, azul-petróleo, para lá da brancura das cristas que afloram aos meus pés nus - aconchega-me o corpo emagrecido de hábitos mundanos. Esta sobriedade é-me familiar: assim começou tudo. Encosto-me a um dos barquinhos espumosos de caruncho que a carne-viva das tintas coloridas encobre e repenso caminhos. De sonhos proféticos, sonhava a queda em escadas velozes, havia já uma semana... Assim foi: areia de praia nos degraus da casa derrapou-me os pés ligeiros. Resultou um braço negro como o breu da noite que me cerca. Areia da fina... O mar chamava-me! A vida tem este hábito de parar-me se acelero, de dizer-me "Olha em volta: que vês?"... Olho. Agora, mais nítida do que nunca, a minha estrada. Cumpro a promessa feita e quem me ama como sou: "Prometa-me, V., que nunca deixará de escrever... Prometa-me!". Prometo. Mas não esqueço a ascese: privo-me de mundo, de amores, de vícios, de danças, de tempos perdidos no som e em fúrias. Eis-me tábua-rasa! Eis-me ao serviço de outros que me pedem tanto! Eis-me com mais para dar do que para receber. É a sina, é a Lei, é a única redenção: há mais prazer em dar do que em receber. Assim é, desde sempre. Aceito. Calo. Oiço, observo, escolho, sorrio de mim e dos medos de antes. De tudo, poucas vezes, mas muito a cada uma: amor, alimento, músicas viciantes, simpatia de infância, a que confia cegamente. Despojamento, ausência, silêncio. Nasce-se só. Morre-se só. O resto é mero ruído que apenas a contemplação entrecorta: volta-se, então, a Casa. O mar é já estar em casa. Concha. Nicho. Ninho. Calidez que só a gélida aragem pode trazer. Tudo o mais, efemérides, borboleteando mentes dispersas. Saber para onde se vai, aceitar as pedras do caminho, e sempre, sempre, sempre, o auto-conhecimento por padrão. Consciente: agora, neste momento, aqui, no silêncio, escrevo. Saboreio isso. O corpo lança ferros aqui; o espírito vagueia algures sobre as águas de azul-indigo que há dias sobrevoo em sonhos. E isso, que quererá isso dizer? Espero por sinais. Consciente de aqui estar, sensitiva, alerta, sedenta de sinais.

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