19.4.07

Alvinegro

Sigo, perfilando-me com os prédios da cidade
morna.
Estou morna com ela, dúctil, infinita
deslizo, morte a caminho,
vida latejante em mim,
medito, passo a passo,
no que os meus olhos devoram
de mundo,
de mundo,
tanto mundo!
Vestida,
nua a alma: sóbria!
Tudo o que seja de vértices
se estreita no campo
da visão e imiscui filamentos
de vidas - muitas outras -
nesta que é, ainda, a minha.
As bacantes desfilam, calça
branca transparente, seios
que saltam,
detestável vulgaridade à transparência, elas
dão tudo ao transeunte, revolvem-nos
estômagos, encaloram
os imbecis por culto.
Quase há - a troco pouco - acidentes,
ridículos acidentes
("distraí-me com os meneios de uma porca que passava..." e
até verem os filhos à noite,
quantas
vezes
pensaram eles em
sexo,
os falaciosos anónimos,
acefálicos desesperados?)
...
A discreta sensualidade
quase jaz,
o mistério perde-se,
a evidência aterroriza,
asqueriza-me
os dias brancos por norma,
essa altervulgaridade.
Sem subtileza,
deslizamentos de graça,
movimentos sinápticos dignos de nota,
fazem-me pena as óbvias
mulheres
quase-gente,
sacos de pancada,
desesperadas de homens por minutos, homens só
que se esvaiam
em minutos,
gatas gastas,
queimadas,
a evidência entumecida sob as saias,
ali onde lhes palpitem neurónios volvidos fusíveis...
tão céleres face ao abismo, tão vagas nos prazeres.
Nada a obstar, o mundo é mundo!
Que avance, freio nos dentes,
sabor a sangue e desespero,
mas ai
da
tão pouca exigência
nos dons essenciais,
nas horas nascidas para a perfeição do divino acto!
Insensatez de penugem...
Isto apenas as redime: a que lhes sabe o vazio?
O depois, o depois, o depois...
Sabem, ao menos, a quem se vendem?
Isto lhes ensinam: oferece-te ou vende-te.
A que sabe aquilo - tudo aquilo - que no percurso não deu luta?...
Vertical, guardo o leito para as quatro paredes.
Só quero os olhos dele, os olhos dele, os olhos dele
que se abrem de espanto
quando passo e me
queimam colo, braços e ancas, narinas
abertas, ele inala-me
e quase fabrica em público
um beijo que quero só nosso,
despenteado contra a parede
que
são as suas mãos esguias
de cobre,
o beijo
enlouquecido de tão lento,
como o meu corpo se dá
nas horas perfumadas de
"alta vai a noite e eu em ti".
Como ela, elevo-me aí: dentro
da cidade, mas
fora
das ruas.
E os olhos dele, os olhos dele, esses olhos que me despem
e sabem
que sou só deles
enquanto me chamem sua.
Como a sombra e o reflexo de tudo o que se espelhe no sol.
O branco e o negro.
Definitivamente, não sou como as mulheres
todas que me passam nas ruas
o testemunho daquilo que não quero, abomino, execro por força.
Faço-me única.
Ele sabe que valho um tesouro
e
uma
coisa
dessas
não se expõe nas ruas da minha, da cidade dele,
nas alamedas sob o sol.
Eu sou da sombra: liquefaço-me apenas
à ordem de uma voz que é luz e é
umbrosa,
vibratória
nas cordas vocais que são minhas,
me perfura até ao âmago da electrização
nocturna entre alvos,
ondulantes,
gemidos
lençóis
de-um-homem-só
que se perde.
Venturosamente,
perde-se algures
na cidade
que é o meu corpo
risonho e sinuoso
aos poucos
deleitado
:
alvinegro
exoceto
!
.

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