8.3.07

Vidro fosco

Uma formação em V movimenta-se no céu molhado sobre o meu carro: aves migratórias. Desde a infância, não viam os meus olhos tal beleza. Março entra e, logo ao seu segundo dia, o tempo diz-me que muda.
Sete. Cabalísticas e envoltas em penas cinza como as nuvens, as seis dos braços abertos do V seguem a do vértice, um ponto cardeal dentro do vento. Dirigem-se para norte, cortam-me a linha do horizonte, desviando-me o curso do olhar em delta que se abre sobre o mar na linha do horizonte. Avançam. Sigo-as pelo vidro direito do meu carro gotejante de chuva. Instintivamente, diminuição de velocidade: como não entender esta paz que me faz apelos em forma de sinal dos deuses? Cabe-me trazer nos ouvidos o som cavo da chuva nas palmas das mãos abertas; na boca o travo do sal açucarado dos teus beijos; nas narinas pequenas e vibrantes o fluxo de ar em torrentes dos sensitivos; nas polpas dos dedos a forma exacta da tua boca; nos ouvidos os sons do que é alado e enche os vazios entre as plumas com ar frio volvido morno aconchego.
A continuar as suas provocações como o tem feito, a natureza só poderá levar-me de volta à mulher que fui nos primórdios. Então, não poderás culpar-me de te lançar feitiços. Só a natureza explica que se meça a pulsação pelo latejar da seiva nos veios das folhas. Só ela sabe a que ponto me alimento dos cinco sentidos. É ela a única culpada. Cede. Em nome da formação de aves em flecha rente à costa, estarás em casa. Digo-te isto como unívoca verdade - por ser a minha - através do vidro fosco com células neuronais que trago na arcada torácica. Há quem lhe chame alma. Como aqueles pássaros, voo em rota de colisão com o teu peito morno onde me seguras o rosto que se esmaga devagar em amálgamas de boca em sede.

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