5.11.06

Sinais exteriores de...

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~~~Dói-nos o peito. A dor aumenta se, ao respirar fundo, nos vêm à memória aquele rosto, o andar, o riso, o odor de um after-shave. A respiração faz-se mais funda. A dor continua. A respiração acelera-se. Revemos risos, recordamos frases, baixamos os olhos, relembramos o toque morno do primeiro aperto de mão, o oficial, o primevo dos toques. Tudo o anterior é em câmara lenta, ao estilo d' A Lentidão de Kundera e nós somos as mulheres voluptuosas que Kundera saboreia com palavras. Queremos fazer permanente a presença de um corpo que estremece se passamos. Estremecemos também. Desde as fundações até aos fios de queratina ardentes de ruivo a que se convencionou chamar cabelos. O outro corpo encara o nosso e abraça-nos de olhares. Enlaçamos de volta, lavadas em riso. Cora-se, por vezes, por pudores que deliciam a outra parte, o outro corpo que já imaginamos parte do nosso. Unos. Trinos. Há volúpia nas golfadas de ar que nos devolve a atmosfera e sabemos parte do que o outro também fará suas. Devolveremos vapor de água que será uno quando humedecermos as janelas dos quartos partilhados. Queremos ser o pedaço de pão que o outro abocanha, o sumo que bebe e lhe humedece os cantos da boca, limpar com beijos pequenos e lentos, um de cada vez, em desenho recortado, a humidade do sumo que lhe dê brilho aos rebordos de uma boca que queremos mais do que ao pão que o nosso estômago reclama. Queremos ser a colher com que rodopia o aromático café que inala sob os olhos. Queremos ser inaladas por toda a extensão onde haja poros. Queremos do outro corpo todos os poros como um terreno que conquistámos sem luta, porque não acreditamos em conquistas óbvias e desde o primeiro momento estava escrito que estava escrito que estava escrito (estava!) que seria aquele nome entre os nossos dentes-infantis-de-neve-limpa, entre os lábios-rosa-pálido-húmido como auréolas de seio que nos coroam a mucosa-boca, sobre a língua vermelho-cereja inflamada do sangue que lateja quando dizemos aquele nome. Queremos acordar com aquele nome. Acordamos com o nome, um dia acordaremos com o dono do nome que chamámos no vazio, entre mantras Aummmm - Om Klim Krom - Nam Myoho Rengue Kyo - Amo - Eu amo?... Aummmmmmmmmmmmm, dizemos. E diz-nos o corpo que está feliz. A cada passo, somos gulliverianas deusas com o dom da ubiquidade, voamos com asas nos pés, mercurianas, dom da palavra, a nossa dicção que o homem bebe como bebe hidromel. Queremos eternizar o nosso nome na boca dele, recordar a delícia da língua que colámos ao céu-da-boca quando ele nos disse, pela primeira vez, o nome que nos deram aqueles que mais nos amam, os nossos pais. Ele honra o nome que para nós reservou o sangue dos antepassados hoje volvidos pó. Sabemos que tem de ser, que sofreremos mais do que mãe que vê o filho a caminho de uma guerra, que nos fará esperar horas a fio enquanto se entrega a afazeres inúteis do seu dia, que um dia lhe veremos as costas enquanto outra mulher nos tomará ceptro, trono e senhor. Sabe-se tudo, mas a entrega está ao nível de um nirvana particular, um jardim secreto pequeno como a cabana que fazíamos com a mãe sob os lençóis da infância, um lugar recôndito e sem fim à vista, pleno de arcobotantes e colunas de todas as minas de Mória do Senhor dos Anéis. Neste sonho há elfos: somos nós a sua rainha, orelhas desiguais, rosto magnético, olhar perdido no vago. Algures, no horizonte, um caminheiro viu-nos no banho do rio, cobriu-se de cobiça, deu-nos suave caça, aprisionou-nos no seu peito. Liquefeitas, estaremos prontas para a entrega de todo o património de alma que juntámos. Trazemos dores, apreensões, fundas alegrias como a do corpo em flecha sob a água da piscina, aguentando a respiração a caminho de Deus, ondulando de prazer. Sem culpa nem mérito, estendemos a paixão até limites de palavras cujo significado nos saberá sempre a novo. Tudo nos sabe a novo. Espera-se o melhor. Não se espera nada, mas dá-se tudo. Nus, ausentes da Força, estaremos sempre aptos a que nos rasguem a fome de ternura. Dilacerados, teremos a certeza de ter vivido. Gasta-se a noite em pensamentos, planos, conjecturas e tudo vai dar àquela boca, àquelas mãos esguias e cálidas que nos marcaram para sempre, aos nossos olhos encerrados a todos os outros que existam em volta. Quer-se morrer de prazer. Morrer-se-á. No dia em que a nossa vida recomece e tudo nos saiba a novo. Renascidos, saberemos então que Ser caprichoso é este que nos habita o peito em dor permanente. Inala-se o fogo, lábios entreabertos, olhos fechados. Silêncio do Potala. Tecto da vida. Coração a compasso,seguimos o som da voz que nos chama do éter. ~~~

* Paixão...?

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