7.8.06

.Omnia Res.

Azimutes, sétimo dia do oitavo mês.
Os voos rasantes das gaivotas à água
devolvem-me à pele o arrepio de frescura
que o calor do dia impediu.
Os gatos aninhados trazem-me aos pés
a cócega primordial que Saramago associa ao sexo.
Sabe-me o palato a primórdios.
Na boca, o movimento em barco do sorriso
traz-me a sabedoria antiga da ternura.
Fui à guerra e sobrevivi.
A brisa marinha desta orla costeira
traz-me aos tímpanos o zuído dos cegos.
Olhos fechados, nimbo-me de certezas.
Não consigo evitar um riso delicioso que
- menina pequena -
seguro com uma mão, para que permaneça,
como apanágio de tudo o que é bondoso.
Escolho as vozes que afagam.
Tudo o que é o resto se dilui,
estigma numa água-marinha de autor anónimo.
Em fundo, Afterglow de Sarah McLachlan.
A plenitude regressa à medida que o bebé cresce. Ferida de paz, feliz até à dor, volto aos meus lugares de sempre. O meu estudo da fauna humana através desta forma futurística na rede termina como começou, discreto. Obtive as provas procuradas: muito haverá a dizer sobre o que a vida ainda não me ensinara e aqui criei artificialmente. Como já sabia, só o dharma é profícuo. Terminam os jogos com a antipatia, caminho para a passagem ao papel das pavlovianas reacções que fabriquei antes mesmo de terem assomado às mentes de diminutos Mister Hydes. Como me tinha sido ensinado, a fidelidade é unívoca. Depois, só muito depois, a criação se metastiza na alma precoce. Teclando neste piano alfabético, cumpro a promessa feita à minha mentora: nunca deixarei a escrita. Foi-me ensinada a espera: esperar é uma virtude. Chegou o tempo de agir, mesmo que o gesto seja o do abrir e fechar de uma gaveta onde guardo os ensaios aproximativos da perfeição possível. Gosto de graus em tudo. Estou no grau acidulado do azul-pervinca, quase-marselha a que sabe uma pedra de sal no centro da língua; o som faz mmm como um comboio que perfure ondas de calor e desloca ar refrigerado; assemelha-se a dedos de criança tentando rasgar o fluxo contínuo de água jorrando de torneira-carranca de chafariz, prismas de brilho incluídos. De facto, Omnia Res. Omnia Res é a argila com que trabalho desde sempre. Do mais nobre gesto à putrefacção da alma humana, tudo é todas as coisas. E nada, nada sob o sol acontece por acaso. Cumpro apenas aquilo de que fui geneticamente incumbida. De resto, sobrarei pó, como a tudo o que existe acontecerá um destes dias.
Obrigada num abraço apertado de irmã a quem me soube ler nas entrelinhas. Como sempre, só o bem que daqui adveio me interessa. De resto, todas as pedras do caminho ficaram para trás, sujeitas ao pó do tempo que tudo apaga.
Plena e em estado de Graça, caminho, olhos postos na abóbada celeste de onde desviei o olhar para entender os movimentos echécquianos dos humanos mais comuns. Este "blog de gente com gente dentro" (juraria que fui eu a criar a expressão...) desliga-se das canseiras da "actualização ou morte". A irmã-morte ombreia-nos. Induzo-a eu.
As referências são as de sempre:
Holding Back The Years, Simply Red
The Way It Is, Bruce Hornsby
Parto com Robert Kincaid, um animal sinestésico como eu que me prova que existo e faço todo o sentido. Volto para o outro lado do mundo, onde o meu nome é pronunciado num sussurro. A coruja ensina-me os cicios da noite; o falcão peregrino é um leme nas adversidades, um astrolábio no mar brumoso. Redimo-me em anémona, alga, seixo rolado, pés nus nas areias de cada nova manhã abençoada que me tiver destinado a Grande Mãe Gaya, Ísis, Maat, Deusa Total, prova de que existe um Grande Arquitecto. O caminho faz-se assim, na dissolução. Cumpro-me ao largar lastro, angariar infância e ganhar o largo. Só depois adernarei, terminado o plano, nascido o filho.
Onde houver mar, aí estarei eu, na magia de tudo o que é simples: migalhas de pão sobrantes na toalha dos dias, copo de água à transparência, manhãs plenas de promessas onde a morte acontece, curvas de estrada que o carro devore, cabelos de um filho cujo odor se inale com o beijo, flores mortas em jarra de sepultura sem nome, vela acesa na casa sem luz, pão fresco acabado de cozer, a beleza iridescente dos grãos das praias de Inverno sem ninguém, sem ruído de vozes poluentes. A súmula do pó estelar. Silêncio.
Vemo-nos por aí: a seu tempo.
Beijos com sabor a maresia.
Inês Alva
Omnia Res

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