25.7.06

Prata da casa

A colher de Toulouse-Lautrec é este coração em vasos canópicos, o de D. João V sob o losango térreo em S. Vicente-de-Fora, são os dentes e os dedos dos meninos da Palhavã, Praça de Espanha, a pedra branca e cegante do Panteão, as coníferas que a Gulbenkian não ostenta, é o D. Filipa de Lencastre em regime aberto, busto da República. Como se chamará a nossa Marianne? Cuillère é uma palavra tão bonita como qualquer outra, parece-me quase mulher... Curva, de côncavos e convexos, filigranítica, arcobotantes, ogivas sem núcleo, capitéis, medusa, alga que sobe na corrente, espaço aos meus dedos mornos como o do cálamo com que escrevo, afago breve, sussurro da mesa à boca, palavras da tinta à folha, cariátide que me arquitecta os sonhos. Gemino-me com tudo a que se chame sensibilidade. Cheiro com os olhos, oiço com as mãos, sinto com a língua, devoro com todos os sentidos a Escola Flamenga, o azul pervinca das papoilas que me opiacem um Monet, a pintura japonesa que Proust amou, Les Nymphèas boiando, glabros, Dürer, parecido comigo no olhar límpido e cortante do seu auto-retrato, Brueghel, o Velho, irmão nas dúvidas e na irmã-paixão pela culpa que é carregar a dolorosa beleza do mundo, o longilíneo de El Greco e o rotundo de Botero, a imagem Goyesca e o fogo de Rodin, Modigliani, De Chirico, mistérios de um Godot de Magritte e Klimt, fogoso, ruivo, recortador de vestidos para Émilie Floghe, tésseras, tésseras, socalcos e mosaicos e óleos e sinuosidades. Interseccionismos. Chamam-lhe Arte: chame-se-lhe Mãe. Ou radiografia única da alma humana, talvez. A possível. A possível alma humana dos sensíveis. Dos outros, das bocas de raia vorazes de vaidades, compreender não é um fim em sim, é um meio. Como fazê-los compreender da vida a esmagadora, esbelta, arabesca e seráfica finitude?...

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