Como se devolve ao corpo o cheiro da juventude? Devagar, sem que ele se dê conta, entrega-se aos alheios odores um corpo que é ainda livre da morte. Como se toda a humidade da casa, da rua, do bairro decidisse corporizar-se naqueles que seremos um dia. Entra-se num autocarro, numa sala de espera de consultório médico, num salão-de-chá mais tradicional e eles espraiam-se por mesas, apoiados em bengalas, apoiados nas cadeiras, apoiados no nosso olhar mais atento. Buscam-nos. Esperam pelo dia em que entraremos e, antes de Metatrão, os levemos a passo lento a rever a cidade. Confundirão as nossas vozes, sorrirão em reconhecimento.
Há uns anos, vivi perto da Praça de Londres - na capital - e observava sequiosamente a relação dos "metropolitanos" com a velhice. A velhice era, na realidade, todas as (outras) pessoas. Sentados em cantos ou deslocando-se a custo, os idosos arrastavam pelo vazio sapatos mais elásticos do que as articulações; as cataratas provocavam-lhes enganos e não era raro que parassem a olhar-me só porque lhes sorria. No meio de uma turba de cínicos sem almas, sem gentilezas, sequer, no mais recôndito do peito, eu gastava em sorrisos a minha caminhada Avenida de Roma acima. Os lisboetas que discretamente observava eram o retrato do enfado, do não-me-merecem-no-país, calaceiros fingindo presto, iguais a todos os outros que, perna alçada, se expunham na Mexicana, na Frutalmeidas, na Livraria Barata, em poses de inglês colonialista, esgares de nojo, sentimentos de desconfiança, antipatias tão crassas como lhes era baça a pele. As senhoras dos escritórios - assisti aos diálogos de tantas da sede da Caixa Geral que ainda sinto o enjoo - invariavelmente apressadas, a sempiterna saia clássica pelo joelho ou mais acima, o petit foulard enrolado à volta de pescoços quase sempre atarracados, brincos, pulseiras de berloques, fiozinho sobreposto, sapato clássico, o mau humor estampado, pele baça, sobrancelhinha arquedada - tólhápaondómíúda házáre? - e ares de muitos afazeres, muitas, infinitas responsabilidades. O enfado mora ali. Nas lojas, a simpatia era nula, a consideração inexistente e o vício da pressa a desculpa para se parecer bom profissional. As pessoas são despachadas, o dinheiro lançado sobre os balcões, o olhar não poisa no ser humano em frente. Dor física de tanto vazio.
Ficou-me a delicadeza dos homens mais velhos, os gentlemen de tempos idos que, solícitos, seguravam nas portas, pediam perdão se estorvavam, sorriam com charme. Também as senhoras mais velhas - e apesar de alguma aparente arrogância - tinham muito de delicadeza, um saber-estar, um culto da graciosidade que a geração do momento - justamente a que não poderia arrogar de ter erguido o país - costuma reclamar como características suas.
Todos os velhos são iguais. Ficaram-me os rostos massacrados por rugas, os olhos macerados de décadas, os sorrisos que tantas vezes recebi à entrada do prédio, no autocarro quando cedia o lugar, no cinema "Londres" quando cedia a passagem. Há uma ternura imensa nos olhares de quem já pouco tem para viver. Não esperando nada em troca, exultam se lhes é dada alguma atenção, retribuem se lhes é oferecido o sorriso, abençoam em silêncio se o olhar não os evita. O meu olhar corta a direito, prega-se a quem me dá o privilégio da troca de palavras, é a minha bengala-de-cega num mundo onde os olhos se perdem do essencial. Em Lisboa, apercebi-me com mágoa do asco que parecem inspirar os mais velhos a uma comunidade aberrantemente antipática, embaciada por supostos afazeres, vazia de tempos de espera. Ali, não há pausas para olhar a vida em gestos de reconhecimento. A vida que, a cada dia que passe é mais um privilégio oferecido, saberá Deus com que objectivo.
Ficou-me a ternura da comunidade de São João de Deus, ficou-me a vetusta biblioteca da minha escola, ficaram-me os sotaques de tantos tons de pele, sempre menos do que os que idealizara antes de ver o meu horário e as carinhas nos livros de ponto. Ficou-me a solidão dos mais velhos; registei os sorrisos reconhecidos por um semblante mais iluminado; guardei - para um dia os testemunhar no papel - os acenos de cabeça, anuindo sempre que perguntei sem retórica "E como tem passado hoje?..." Ficaram-me na lembrança os olhos embaciados por cataratas, mas brilhantes de vivacidade; o andar lento de quem se disse atropelado pela cidade, mas era a memória lesta da história colectiva; as lágrimas de saudades de outros tempos, outras pessoas que nunca vi, outros lugares onde não se volta. Nunca como na "metrópole", tão ávida de dissociar-se da "província", vi tanta dor dissimulada, tanta pressa de fugir da alma que cada um traz dentro de si, tanto vazio de humanidade.
Ainda trago comigo os relatos de uma Lisboa fazendo justiça às letras do fado, dos poetas, dos pregões. Nela, o que de alma houvesse - nesses tempos como nos que vivo eu, que acredito piamente no progresso e no meu mundo actual - estava não no Tejo mas nos olhares sorridentes; não no típico da urbe mas no que cada um trouxesse dos lugares de onde vinha; não numa ideia abstracta de passado glorioso mas no que de mais rico existe numa cultura que se fez de muitas outras: a generosidade. Saber viver com leveza é todo um património de generosidade. Lisboa não sabe dar-se. Lisboa perdeu a face. Lisboa só é bela no que houver de não-humano. Uma comunidade inexpressiva foi aquilo que vi. Não havia simpatia; não havia comunicação; não havia generosidade. Aí está toda a falácia: Lisboa será de quem lhe chame sua. Eu amo-a. Sou dela: ela pertence-me em toda a Luz que emana do Tejo. É dela o meu oxigénio, é do seu chão o balanço do meu corpo que caminha, é nos seus recantos que se completa a minha História. Só não percebo quanto custa um sorriso; não entendo o cinismo crónico; sinto repulsa de uma comunidade que não tem tempo para os seus mais velhos.
Eu, futura portadora de senectute, não tenho medo da imagem da morte que vi nos olhos baços de tanta gente que a cidade engoliu. Há dias, li não sei em qual blog que todas as cidades são construídas sobre mortos. Nesta, os mortos caminham por entre semi-vivos sem tempo para parar. Como na derradeira pintura de Pieter Brueghel, há cegos que guiam outros. Não há tempo para olhar. Não há tempo para ouvir. A compaixão perde-se em bancos de jardim onde os agora-não-produtivos esperam a morte. A história da cidade cuspiu-os. A cidade, que é todos os que nela fazem percurso, tem pressa de esquecimento. A memória tem um tempo. Na cidade ufana, a memória é mais ultrajada do que a calçada portuguesa é cuspida. O que se perde sempre que não se "perde tempo" é aquilo que só o tempo ensina: que um dia, todas as comunidades entenderão o valor dos anciãos, a sabedoria dos que são afastados por compulsão, a calma dos olhares tão cheios de mundo como os terão um dia os homens que agora correm pela cidade. Um dos sinais da exclusão é a quantidade de crianças cujos avós são esquecidos para sempre nos "lares"...
Eu, velha do futuro, não quis ouvir dizer. Fui ver como era. Nos outros, vi aquilo que serei um dia. Também a mim a cidade engolirá com a pressa de milhares de cegos. Então, qualquer gentileza ou sorriso serão afagos para quem já não recorde sequer quem foi. A memória do nosso corpo reconhece sempre os lugares confortáveis a que nos transportem os sorrisos dos outros.
4 comentários:
Excelente, Inês.
Muito bem visto e bem expresso. (abordo o mesmo assunto num livro que sairá brevemente).
Quem gosta de Lisboa, quem tem capacidade para ver Lisboa, não deixa de lamentar as mazelas sociais que a cidade vai escondendo com a "ignorância" das novas gerações.
Um abraço.
João Norte
intro.vertido.weblog.com
Este poste é perigoso.
É um daqueles que nos fazem pensar por um minuto nas nossas vidas e abandonar o ar blasé, pretensamente cosmopolita, com que nos vestimos (com que me visto...) no dia-a-dia.
E abandonar, por um instante, o humor fácil, a graçola, a leveza.
Um excelente poste, portanto.
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Bom, lá vou eu novamente para os afazeres e para as piadas parvas...
Um abraço, Inês.
Olá a todos!
Tive de deixar passar o dia durante o qual me catapultaram - qual bala humana - para o desconforto do espaço sideral... Já passou: amanhã, este blog permanecerá nas suas calmantes 20 visitinhas diárias. Serenidade...
O LR sabe que escrevo como sinto - os ex-Matamouros/Blasfemos conhecem este blog desde os seus primórdios (quase 3 anitos) e o meu (mau) feitio é lendário, portanto, poucas ondas...
Merci quand-même, LR (os 350 açoites amaizós insultos seguem ainda hoje por mail, humpf... Bámulábêr a cunbersa!)
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João Norte,
fiquei curiosa por conhecer o livro que refere. Felicidades!
Aquilo que escrevo é apenas o que vi, o que Lx me ensinou. De facto, todos os lugares me prendem os olhos viciados em observações pouco ortodoxas e tudo o que me rodeia são apelos à escrita. No fundo, a minha não passa de (+) uma opinião e, como todas, tem a validade que tem. Fascinam-me, desde sempre, os anciãos da tribo e as crianças. O resto é apenas um estado transitório entre um e outro momento: a Morte observa a cada minuto, por isso agarro a vida e a faço válida. Por vezes, deixo-me ainda encantar por um estádio fascinante no mundo da escrita: o dos encarcerados com transtornos mentais (long story...)
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Rantas: got me there! Fui identificada no vosso blog:
guilty as charged...
;)
Quanto ao texto, escrevê-lo foi como rever o filme da minha passagem por Lx. Ainda sinto os cheiros das ruas, o calor excessivo da cidade, a frieza dos transeuntes fingindo-se muito "blasés" - como diz - a tristeza colada aos semblantes.
Se os meus olhos filmassem!
Não vejo qualquer parvoíce no blog que assina.
Na vida, tudo tem o seu lugar (que horror, odeio dizer evidências!) e se há momentos em que é preciso vencer o marasmo, a ANESTESIA na qual mergulharam quase todos os (sobre)viventes em volta e fazer apelos à sensibilidade (por que raio se há-de ter complexos de mostrar bons sentimentos?...), tb. há fases de maluqueira (eu estou aqui a abanar o capacete e a bater o pé ao ritmo dos Blondie p'ra descomprimir!).
Sem dramas. Desde que com classe, graça q.b. e principalmente informação útil e/ou sensibilidade, há que diversificar os blogs nacionais!
[Calão é q NÃO (,pá)!]
[Não me conhece neste meio e parece que estou em troca de galhardetes, mas é apenas a impressão do momento: vou já "partir naquela estrada", ok?]
Abraços retribuídos!
Até qq dia, compañeros
y qué Diós os bendiga!
Inês Alva
P.S. Agora, é esquecer q o blog existe, ok? Thxs!
:0)
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