28.3.06

E isto, o que é?...

.A leitura de um só inaugura as vidas a muitos.
Leitor misterioso diz re-viver ao ler-se no que escrevo.
De vida temporariamente suspensa, descobriu este nicho.
Abrigou-se, estendeu laços. Diz-se irmanado no que sinto.
Diz reconhecer o toque dos seus dedos na pele que não me sente,
adivinhar-me o tom da voz,
sentir-me o hálito quando acorda.
Que estes cabelos cujos reflexos nunca viu são a água klimtiana com tão perversas como doces ondinas.
Quer ser o gato que acaricio, a água que recebo, mãos em concha nas manhãs inaugurais, o longo brinco que aplico à orelha morna, o tom de rebuçado de café nos meus lábios onde poisa o vento.
O velho roble de tronco incerto,
a rugosidade do muro de granito por onde escorro os dedos,
as folhas trémulas na brisa que sonho que sou quando sou eu mesma.
Nunca me viu na autenticidade das luzes cruas das manhãs do dia por nascer;
nas horas de medo ante a ameaça de vida breve dos que mais amo;
nas fissuras de pele, manchas, palidez das noites de cansaço, horas mortiças;
no medo do baque de estar viva, o vento em vagas contra o peito, este estertor que se traz dentro e nos carrega em assombro - o que é tão enorme como existir esmaga-nos de quotidianas minudências... E contudo, e contudo.
Leio poesia. Escrevo-a.
Amasso pão. Como-o.
Escorro água em fios. Sou ela.
Esta aguadilha da boca nas albas é o fio que um dia se quebra,
dúctil em paroxismos,
linfa que se devolva à terra,
olhos em fechamento,
pulsos abertos,
terror da Hora Maior,
mas querer como nunca perceber,
saborear até ao palato a ténue linha divisória entre este chão e o Outro Lado.
Por isso sinto mais: um pé do lado dos vivos; um pé do Outro Lado.
E o meu leitor que pensa que existo, realmente...

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