3.2.06

Dos dons

Se um génio como Mozart se afastou de Salzburgo e foi para Viena porque o incomodavam a mediocridade e a banalização do óbvio como sinónimo de bom da sua cidade-natal, imagine-se se fosse a capital do nosso país o seu local de nascimento... Os cínicos (sempre me divertiu a etimologia da palavra estar enlaçada com a da palavra cão, que me perdoem os cinólogos!) caracterizam-se por cuspir (n)o que não entendem.
Transponho para Portucale (de nobres origens mas de raça serôdia) o fenómeno da elevação do execrável à categoria de clássico que todos deveriam aplaudir, comprar, consumir, tornar tão seu até que o conteúdo tomasse o continente. Numa palavra: acefalização. Diabolizar o que é brilhante em troca de um seguidismo próprio de vermes processionários é anátema da lusa nanointelectualidade. Aquela que é de bairro, a do louvor aos amigos, a de esmagamento de tudo o que não faça parte da súcia frequentadora dos mesmos salões. Aliada a ela, o eterno nepotismo: maridos, namorados, amigos, colegas, conhecidos em geral são candidatos aos arraiais a que os media chamam "feiras de vaidades" e das quais, não surpreendentemente, se alimentam.
Conheço poucas pessoas suficientemente idóneas para terem negado a tendência medíocre para o partidarismo, as amizades, as demais conveniências. Os mais fortes emigraram. Os mais fracos vegetam, mendigando uma atenção que, numa sociedade digna de respeito, lhes seria automaticamente dirigida. Por isso, sempre que alguém aparece batendo os cascos para fazer alarde ou elogia amigos como senhores de todo o talento - coisa quase sempre nada isenta - semicerro os olhos e analiso as origens da história. Invariavelmente, deparo com logros, fraudes, subidas à custa de muito empurrão e de pagamentos suspeitos pelos "favores".
Os blogs são o espelho da nacional-escatologia - ciência dos fins - imperante e eternizadora da pulhice mais nefasta que um país pode suportar: pôr em destaque muitos dos que deveriam ser banidos por estarem sob suspeita de nepotismo. Para um país árabe? Não: pelo desprezo do esquecimento. É dessa parte que o Tempo se encarregará: a falta de talento tem vida enfermiça, após a morte dos içadores da mediocridade profissionais. Bastemo-nos com isso. É tão justo como automático. Quem tiver pernas para andar, que o faça.
Num país de crónica cultura latrinária e diz-que-diz - contudo, o fenómeno alarga-se a todo o planeta, por isso se fala de "falta de identidade" -, há quem, farto da previsibilidade, se escuse a expôr, publicar, trazer à luz, fazer carreira neste chão infirme e prostitutário, advogado da "cunha". Esta que aqui escreve, sem objectivos de entrar pelos olhos dentro ao mundo, mera desconhecida com meia dúzia de blogs e muitos amigos dos quais não faz alarde e que respondem por igual, recebeu, de pretensa novel "escriba", um atestado de falta de talento e de vazio de contactos, além de pouca evolução neste meio, vaticinando terrível, inenarrável falhanço na vida em geral, como se se tratasse de uma corrida olímpica. O que isso diz sobre um ser humano seria fastidioso explicar. Pergunta (qual filha de um deus-menor) a esta mulher-na-sombra que aqui vos digita que fez ela em três anos, desde que chegou. Além de um Mestrado? Muito, muito mais, mas isso está em lugares não para todos os olhos. A seu tempo, um destes dias.
A Arte beija quem a dignifique (ainda) mais: os Salieri limitam-se ao talento relativo. Mozart foi - pensa-se - envenenado e o cinismo do mundo conseguiu sepultá-lo numa vala comum, mas a sua música VIVE para sempre, porque é divina a sua inspiração e os salões nunca lhe ensombraram os dias nem lhe tolheram a capacidade criativa! Os elogios em volta, mais não fazem do que tolher capacidades: vampirizam, impedem avanços, não deixam lugar à superação de si. Com capacidade de trabalho, quem pode devastar a nossa crença, mesmo se nunca chegarmos a lugar nenhum porque não acreditamos em metas mas em desafios? Mais uma vez, só o Tempo. Que ele decida.

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